segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Violência e Cultura


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Resumo – A diversidade de práticas violentas que se verifica na contemporaneidade, bem como, sua intensificação quantitativa e qualitativa, têm sido alvo de estudos e acaloradas discussões na academia, na busca por elementos teóricos que explicitem tal crescimento e que contribuam na elaboração de políticas públicas visando seu controle. A reflexão proposta neste artigo consiste na observação dos fenômenos violentos, segundo uma perspectiva que ultrapasse as limitações encontradas em uma análise meramente, criminal e criminológica, todavia, com um enfoque mais antropológico, que favoreça o estudo da violência enquanto elemento cultural e ideológico, que contribui na construção e mutação de novos contextos sociais.

Palavras-Chaves – Violência, cultura, ideologia

INTRODUÇÃO


Temática frequente nos meios de comunicação, a violência tem sido um foco privilegiado para os estudos e discussões no meio acadêmico. E esta candência decorre da constatação que aquilo que se tem classificado como violento alastrou-se, diversificou-se, “violentizou-se” assoberbadamente.
       A busca por explicações que justifiquem esse fato, bem como, a construção de políticas públicas para seu controle e redução, recaem, quase que invariavelmente, em pesquisas nos campos das Ciências Políticas, da Economia, do Direito e da Psicologia, com farta documentação histórica e bibliográfica, abundância de dados estatísticos e de referências geográficas. O conjunto desses estudos, normalmente, concentra-se em objetos como a criminalidade (internacional, urbana, rural, etc), as medidas de segurança territorial e pública, o terrorismo internacional, as guerras e os direitos humanos. No entanto, como constata Wieviorka (1997), essa diversidade de violências contemporâneas não são unificadas, todavia estão inseridas na cena local ou regional onde ocorrem.
        Partindo do pressuposto de que toda ordem social instaurada tem em seu nascedouro a violência – em menor ou maior escala – e que nesse processo, há, de certa forma, a implosão dos valores, da ética, do direito e dos princípios da ordem anterior, instaurando-se certo caos, meu propósito neste artigo é refletir, dentro de uma perspectiva sociológica, sobre o fenômeno da violência enquanto construção cultural-ideológica.


      Considerando que há uma preocupação permanente com a manifestação plural da violência – e só podemos analisá-la como um fenômeno plural –, em especial em sua forma criminal, entendo que, na contemporaneidade, a violência manifesta-se como elemento de transgressão a uma ordem colocada, bem como, forma de negociação e afirmação de novos grupamentos humanos. Contudo, dicotomicamente, há uma violência da ordem, simbólica e imperceptível pela própria ação da ideologia. Nossa proposta é que nesse conflito entre a ordem posta e a nova ordem que surge pela desconstrução da primeira, que reside a insegurança, o sentimento coletivo de medo. Para tal, parto da análise da idéia do violento enquanto classificação cultural, seu papel junto à ideologia no controle dos indivíduos, concluindo com a análise desse conflito.
 
A VIOLÊNCIA: UMA CONSTRUÇÃO CULTURAL
 
            Segundo Wertham (1971), a “cadeia de violência” arrasta-se desde a noite dos tempos até a contemporaneidade, com o que corrobora Maffesoli (2005) ao analisar o mito bíblico do pecado original, observando que o princípio da história da humanidade ocorre com o mal, o assassinato, o sangue, e percebe-se sua presença na fundação de todas as estruturas sociais.
            À luz da Antropologia, poder-se-ia dizer que essa violência primária ou fundadora, tem suas raízes mais concretas, com o homo hábilis, com uma alimentação onívora e carnívora, já em posição bipedal, liberando seus membros superiores, em especial, as mãos, para a utilização do fogo e instrumentos primitivos, como ocorre, posteriormente com o homo erectus. O homo erectus (aproximadamente, 1,7 milhões de anos) tem uma dieta carnívora, domina o fogo, passa a dispor de instrumentos – que depois aprimora – e institui os primeiros ritos. Assim, o homem passa a desenvolver mais intensamente a caça – não somente a animais maiores, todavia, aos próprios semelhante. Isto requer a cooperação mútua entre os caçadores, o que fomenta o surgimento de sistemas de comunicação simbólica, contribuindo para a transmissão do conhecimento.
            Ressalto que, a partir desses sistemas de cooperação e de comunicação simbólica, com o surgimento de um corpo rudimentar de conhecimentos e experiências, aliado ao crescimento dos grupos humanos e à busca por novos campos de caça, eclodem as condições básicas para a manifestação da agressividade humana. Logo, na tentativa de dominar a natureza à sua volta – e, posteriormente, seus semelhantes –, sobrepujando a própria incompletude de seu aparato biológico, o homem desnaturalizou-se cada vez mais – pela própria ação da cultura – assumindo um comportamento antitético ao comportamento animal. Isto se manifesta de forma clara no manuseio dos instrumentos que produziu, mormente com o domínio da tecnologia para trabalhar metais, o que, simbolicamente, representa sua ruptura com a animalidade.
            Essa ruptura, todavia, serviu para evidenciar o potencial de agressividade e destruição do homem, pela mais diversificadas formas de violência. Michaud (2001; p. 76), à luz das proposições de Bataille, assevera que:

O animal humano que dispõe de instrumentos corta a continuidade do mundo em objetos que podem ser manipulados e são destinados ao conhecimento. Há aí uma primeira violência, fundadora, que o arranca da continuidade e da imediaticidade, que o arranca da natureza e o faz entrar no excesso e na transgressão (...) essa renúncia à animalidade não pára de suscitar a nostalgia de uma impossível retorno a ela, que então desemboca numa outra violência, aquela que, na festa, no sacrifício, na crueldade, na orgia guerreira da destruição, procura incessantemente transgredir a humanidade através de outros excessos ainda mais radicais. Em vez de traze-los de volta ao animal, essa segunda violência afirma ainda mais radicalmente a natureza excessiva e a potência de desregramento e de transgressão próprias da humanidade, fazendo-a surgir como a única capaz de horror. 


            Considero que essas proposições teóricas apontam para a idéia de que “a violência como prática deliberada é atributo humano [...] considerada como um fenômeno social, inerente a todo tipo de sociedade humana” ( MENDONÇA, 2005, p. 72), visto que, os animais, no imediatismo de suas necessidades e ações, bem como, pela ausência de interditos ético-morais, são simplesmente naturais em seus ataques furiosos.
            Entendo que a análise e compreensão das manifestações plurais da violência na contemporaneidade, ultrapassam os explicativos que a as teorias levantadas pelos estudiosos das ciências citadas no início deste artigo, ainda que revelem importantes elementos sobre as causas do fenômeno e sua manifestação nos meandros da sociedade. Requerem seu estudo à luz da cultura em referência, ainda que existam elementos universais na ação violenta em meio aos grupos humanos.
          Diante da concepção que a violência é um elemento cultural, a etimologia do termo traz alguns pontos úteis à reflexão sobre os parâmetros que definem o que é violento. De acordo com Michaud (2001; p.8):

“Violência” vem do latim violentia, que significa violência, caráter violento ou bravio, força. O verbo violare significa tratar com violência, profanar, transgredir (grifo nosso). Tais termos devem ser refereidos a vis, que quer dizer força, vigor, potência, violência, emprego de força física, mas também quantidade, abundância, essência ou caráter essencial de uma coisa. Mais profundamente, a palavra vis significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer sua força e portanto a potência, o valor, a força vital [...] Tal força, em virtude de uma coisa ou de um ser, é o que é, sem consideração de valor. Ela se torna violência quando passa da medida ou perturba uma ordem (grifo nosso)

             Um ponto evidenciado pela análise etimológica envidada por Michaud é que a idéia de violência fica definida como “emprego de força desmedida”, isto é, algo que ultrapassa, que transgride uma ordem estabelecida. Logo, as conceituações e classificações daquilo que é violento, estão calcadas em parâmetros que regem a vida dos indivíduos e que constituem essa chamada “ordem”. Michaud corrobora com esta asseriva quando exprime que “na verdade, é um erro pensar que a violência pode ser concebida e apreendida independentemente de critérios e de pontos de vista” (ibidem, p. 12).
            Uma outra questão a ser considerada é a associação da idéia de violência a outras como caos, conflito e transgressão, como podemos depreender das proposições de George Sorel e Hanna Arendt. Sorel, discorrendo sobre a greve política, aborda o emprego dos termos “força” e “violência” relativamente aos atos de autoridade e aos atos de revolta, onde defende que a viol~encia deveria ser associada à segunda concepção. De acordo com Sorel (1993; 146), “a força tem por objetivo impor a organização de uma certa ordem social em que governa uma minoria, no passo que a violência tende à destruição dessa ordem”. Arendt (1994; 14), ao estudar o fenômeno face alguns aspectos da política no século XX, faz referência a esse “elemento de imprevisibilidade total que encontramos no instante em que nos aproximamos do âmbito da violência” e, como afirma Michaud (2001; p.12), é “assimilada ao imprevisível, à ausência de forma, ao desregramento absoluto”.
            Assim, se a violência é um conceito que transita pelo universo do previsível e, sobretudo, consiste na representação daquilo que contraria ou questiona por um período mais ou menos durável uma ordem considerada natural, sou levado a concordar com a posição de Michaud (idem, p. 13, 14) ao afirmar que:

A violência é definida e entendida em função de valores que constituem o sagrado do grupo de referência (grifo meu). Apesar da diversidade dos grupos humanos, alguns valores recebem uma adesão mais ampla, mas isto não pode dissimular a divergência e a heterogeneidade das convicções. A idéia de violência cristaliza essa heterogeneidade e essas divergências, tanto que o recurso a ela para apreender os fatos é o indício mais seguro de que estão em causa valores importantes – e no centro de um antagonismo.


        Diante dessas reflexões e considerando a violência como “comportamento de agressão”, deduzo que o fenômeno é algo próprio daquilo que se costuma chamar “natureza humana” ou, melhor dizendo, é algo que decorre de uma ordem construída, a qual chamamos cultura e a que estamos submetidos desde o momento do nascimento.
            Como vimos, o ser humano não age de forma violenta, unicamente por necessidade de alimento, por um institnto de defesa ou por não termos outros recursos de negociação, como as demais espécies vivas. Considerando que ele é orientado em seu comportamento social por um determinante invisível – manifesto por meio de um simbolismo e expresso no conjunto das representações sociais, que permitem a legitimação da ordem institucional, a ideologia – proponho que classificar um ato como violento, de forma geral, é atribuir a ele um valor ético, mas, sobretudo, instrumental, que permita o controle dos indivíduos por meio de sistema de transgressões e penas, como veremos a seguir.

VIOLÊNCIA, CONTROLE E IDEOLOGIA

            A expressão “sagrado do grupo” empregada por Michaud, é bem apropriada para iniciar-se uma reflexão sobre a violência como elemento de controle dos indivíduos¹. Guimarães (2005, p.2), referindo-se às proposições teóricas de Castoriadis, afirma que:

Cada sociedade elabora uma imagem do mundo fazendo um conjunto significante, onde encontram o que importa para a vida da coletividade, a própria coletividade e uma certa “ordem do mundo”. Esta imagem utiliza as “nervuras racionais do dado”, mas as subordina a significações que  não dependem do racional, mas do imaginário.


             Nessa “ordem do mundo” verifica-se a ação da cultura, enquanto mecanismo de controle (GEERTZ, 1989), conduzindo o indivíduo ao processo de socialização, estabelece “planos, receitas, regras, instruções [...] – para governar o comportamento” (ibidem, p. 56). Ora, esta ação invisível da cultura no propósito de colocar o homem sob o poder das instituições sociais existentes (SOUSA FILHO, 2001), funda-se, essencialmente, no sentimento do medo. De acordo com Sousa Filho:

Sua difusão faz parte da instituição da dominação social e política sobre os indivíduos [...] a construção do espaço da sociedade é sempre-já um empreendimento marcado pelo controle social em que o medo é um ingrediente fundamental. (ibidem, p. 14)
            
            Entendendo que o processo de socialização do homem equivale a um sistema disciplinar onde os indivíduos são levados à naturalização e à consequente submissão - mesmo que inconsciente - a uma ordem estabelecida, reporto-me à assertiva de Foucault (1999, p. 140) a qual diz que "na existência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal". Deduzo, portanto, que na inserção do homem na vida em sociedade, a cultura impõe-lhe um conjunto de sanções e recompensas, não escritas, mas insertas na língua e todo o universo simbólico2 que está contido no imaginário social, sendo posteriormente transferido para as leis e códigos positivados.
               Os mitos mostram-se essenciais na conformação desse sistema. Para Campbell (2006, s.p.), “aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos mitos. Eles são histórias de nossa vida, de nossa busca da verdade, da busca do sentido de estarmos vivos” Hoebel e Frost (1987, p. 353) afirmam que:

A crença nos mitos é mais do que um auto-engano infantil; é uma segurança social – um meio de educação e aprendizado, de manutenção de cultura [...] os mitos são componentes importantes dos ritos de transição. Eles reafirmam os primeiros princípios ou os postulados básicos sobre os quais os sistemas de crença de um povo e sua estrutura social repousam. Os mitos expressam a natureza da personalidade que a pessoa deve buscar retratar em si.


             De acordo com Eliade (1989, p. 12), “o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos”. Nas sociedades arcaicas, os mitos conduziam os homens a aprender “não só como as coisas passaram a existir, mas também onde as encontrar e como fazê-las ressurgir quando elas desaparecem” (ibidem, p. 19). Guimarães (1998, p. 105), ao discorrer sobre as proposições de Eliade, afirma que:

Esse “regresso às origens”, segundo Eliade, sobrevive no mundo moderno. Entre os inúmeros exemplos, cita o mito do super-homem que atende às “nostalgias” do homem moderno, pois, sabendo-se degradado, condenado, limitado, sonha revelar-se um dia como um “herói”.

            O mito, assim, funcionaria como uma tentativa de recriar a “unidade perdida”, como coloca Benjamin (1984) ao analisar o que chamou de história da Criação e da Salvação na Mística Judaica. Guimarães (ibidem, p. 106) acrescenta ainda, que:

O Paraíso foi perdido por culpa dos homens que desobedeceram a Deus. É preciso “lembrar” o Momento primordial, quando todos viviam bem antes do passado original e para onde devemos retornar se formos fiéis à fé cristã e aos seus mandamentos. O mito cristão, o mito acadêmico, o mito dos meios de comunicação constroem suas próprias lembranças de modo a manter uma ordem pretensamente natural, factual, objetiva em relação à história oficial.

            E prossegue:

A memória, na qualidade de lembrança, faz com que as pessoas sejam manipuladas pelos valores dos grupos no poder. Estes, ao conduzirem os acontecimentos dentro de uma cronologia, criam uma genealogia e, com ela, um sentido único de verdade. Poderíamos ver representados aqui os princípios do totalitarismo ou do que se poderia chamar de uma sociedade de controle e de dominação.


            Esse tipo de violência foi conceituado por Maffesoli como “violência dos poderes instituídos” ou, ainda, “violência totalitária”. De acordo com o comentário de Guimarães (ibidem, p. 107) “para além do indivíduo, existe uma unidade abstrata que neutraliza as diferenças, levando à submissão, à adaptação, e cada um se torna um espectador passivo de seu próprio destino”.
            Assim, os mitos, especialmente, os mitos de castigo, preconizam a punição daqueles que transgridem as normas sociais – aqueles que “pecam”, que burlam as ordens dos deuses, das autoridades (que geralmente, recebem um caráter divino), dos ancestrais, etc. Eles assumem, invariavelmente – enquanto perduram – um caráter de sacralidade, algo que demanda do sobrenatural ou que está no patamar do inquestionável.
            Logo, conforme propõe Sousa Filho (2001, p. 19):

O medo assume papel fundamental na socialização dos indivíduos e funciona como mecanismo de controle social, uma vez que se encontra ligdo à idéia de poder: sejam os poderes humanos e sociais, sejam os poderes representados como não-humanos, sobrenaturais, sagrados, a que se deve obediência e respeito únicos, pois são responsáveis pela criação e existência do Mundo.


            Esse temor da punição contribui para o estabelecimento da categoria violência ou a conceituação do violento. Retomando a expressão de Michaud “sagrado do grupo”, à luz do raciocínio esboçado acerca dos mitos e do medo, entendo que violência poderia, portanto, ser definida como algo que transgride ao estabelecido pelos mitos fundamentais da cultura em referência. Se os mito estabelecem um aporte simbólico (em geral, sagrado) que busca explicar a unidade, a realidade original, logo, fomentam, também um sistema de punições àqueles inadaptados- seja qual for a sanção – e daí, entendo que os mesmos mitos contribuem para a idéia de violência como a rebelião ou transgressão de uma ordem estabelecida, naturalizada e sacralizada.
            Todavia, mais do que rebelião, a violência torna-se algo necessário à própria existência, enquanto limitação. Segundo Maffesoli (2004, p. 69-70):

[...] Só existe vida se existe determinação. A vida não pode ser indefinida nem infinita; ela precisa de limites. Neste sentido, a etimologia latina do termo determinatio é instrutiva. É o marco que os romanos estabeleceram para delimitar a terra cultivada em relação ao indefinido da terra inculta. O limite, portanto, permite ser. Permite que o trigo brote [...] O marco constitui uma violência. Violência que é fonte de vida. É o que qualquer um sabe empiricamente. É também este “saber incorporado” que constitui a sociedade. Precisamos portanto, dar nomes aos bois: a violência é um elemento essencial da construção simbólica do social: precisamente naquilo em que ela nos liga, ou nos religa, à natureza. É algo que quesemos esquecer, ou que negamos. Em “animal humano” há também “animal”. Em “natureza humana” há também “natureza”.

            É interessante, ainda, analisar a sociologia da cultura desenvolvida por Pierre Bourdieu que, segundo Domingos Sobrinho (2003, p. 66), “é indissociável de uma teoria da dominação”. E prossegue afirmando:

Para este autor, a cultura não é apenas um conjunto de obras, mas também a elaboração de percepções sobre o mundo, uma maneira particular de descreve-lo e compreendê-lo. Não é apenas a construção de sentidos, mas a disputa pelos sentidos legítimos [...] a imposição da definição legítima sobre as coisas pressupõe a existência de um poder que não atua pela coação, pela força física, mas que se exerce sobre os corpos como que por magia. Bourdieu chamou de “desconhecimento” o fato do “reconhecimento” da violência, que não é encarada como tal.

            Essa “magia“ através da qual se impõe o sentido legítimo do mundo social, apóia-se no consentimento do dominado ao exercício da dominação, como num ato de cumplicidade, o que constitui a grande força da ideologia (SOUSA FILHO, 2001, p. 74). Godelier (1981, p. 192-194) defende que há uma única forma de se explicar o fato de indivíduos e de grupos dominados consentirem em sua própria dominação:

É preciso que esta dominação lhes apareça como um serviço que lhes prestam os dominadores. Desde então o poder destes mostra-se legítimo e parece aos dominados que é seu dever servir àqueles que os servem. É preciso, portanto, que dominadores e dominados partilhem as mesmas representações, para que nasça a força mais forte do pode de uns sobre os outros: um consentimento fundado no reconhecimento dos benefícios e da legitimidade desse poder, um consenso fundado no reconhecimento de sua necessidade.

            Como na ideologia a dominação não aparece, mas apresenta-se sob a forma de regra, norma, absoluto, etc, logo, posso entender que esta “ocultação” da
violência, abordada por Bourdieu e presente na imposição do sentido legítimo das coisas dentro do processo de socialização do indivíduo, nada mais é do que a ação da ideologia, observando que:

A relação existente entre ideologia e cultura, pois apresenta a cultura como sempre-já a experiência da dominação da sociedade sobre os indivíduos, vivida como natural, com base em representações simbólicas diversas. A ideologia é propriamente o que possibilita à cultura ser introjetada, assimilada, compartilhada e conservada, sem que os seus padrões sejam questionados ou recusados, em decorrência de não serem percebidos como constuídos, particulares, relativos e históricos, mas como dados, únicos, inevitáveis, necessários e imutáveis – por meio do que se estabelece a dominação sobre os indivíduos em diversas formas. (SOUSA FILHO, 2001, p. 33)
 
Percebe-se, portanto, o conteúdo de violência simbólica que reveste o processo de aprendizagem social ao qual o homem é submetido desde o seu nascimento. Essa violência consiste na submissão à ordem simbólica da cultura e passa-lhe imperceptível pala ação da ideologia. Neste sentido, Bourdieu (2001, p. 10), ao abordar as produções simbólicas como instrumentos de dominação explicita que “as ideologias, por oposição ao mito, produto coletivo e coletivamente apropriado, servem interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo” e prossegue afirmando que:

A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante [...]; para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções (ibidem)

Entretanto, como propõe Sousa Filho (ibidem, p. 65):

A ideologia carrega uma herança dos mitos em sua maneira de representar a realidade [...] O caráter coletivo e a natureza social da ideologia é suficiente para garantir que não se trata de um artifício das classes dominantes para enganar os dominados (grifo meu). O que a ideologia oferece à sociedade o faz valendo-se da própria sociedade pelo apelo constante às representações que tornam o real algo justificado, sagrado e necessário.

            Assim, apesar da aparente discordância entre os autores, o que me interessa ressaltar é a ação da violência simbólica, perpetuando a dominação, submentendo indivíduos e grupos a um projeto social dominante, o que se torna possível, através da ideologia que torna esse projeto como algo universal, que detém os interesses de toda a sociedade. Desta feita, a dominação é mascarada e possibilita-se o controle dos indivíduos, pelo exercício do poder. Neste sentido, a obra de Michel Foucault – em especial, “Vigiar e Punir” – traz importantes considerações acerca da noção de controle social, cuja análise, extrapola os limites da finalidade deste trabalho.

 AS EXPRESSÕES DA VIOLÊNCIA

            Considero que as proposições teóricas expostas no presente trabalho permitem uma reflexão acerca da violência que permeia a sociedade.
            Enquanto elemento cultural, a violência, mormente em seu componente simbólico, está inserido num contexto dicotômico de desconstrução e construção social. Seu caráter construtivo reside exatamente na fundação da ordem pela ilusão do caráter de naturalidade da cultura, através das formas simbólicas empregadas na e pela dominação. Neste viés, alia-se à idéia de poder que, no pensamento de Mendonça (2005, p. 81), “tem uma função real na ordem e, neste sentido, inscreve-se, também a violência. Violência e poder são inseparáveis. A violência marca o início do poder”. E neste sentido, poder e violência agem pelo princípio da ordem, como uma necessidade de evitar o caos, de manter uma ordem estruturada, ordenada, previsível, que aparenta perfeição. Compreende-se, portanto, uma ação agregadora.
            Por outro lado, seu caráter destrutivo expressa a afirmação individual, algo que se interpõe ao poder constituído, que se revela no campo da disputa pelo sentido legítimo das coisas – como propõe Bourdieu -, que se mostra como que uma rebelião aos princípios da dominação presentes na cultura. Mas é exatamente nessa condição de “rebeldia” que se reconstrói o sentido de ordem. Nesse sentido, é interessante observar as três modalidades de violência apresentadas por Maffesoli (2005; 2006): a) a violência dos poderes instituídos; b) a violência anômica; e c) a violência banal.
            A violência dos poderes instituídos, também nominada violência totalitária analisada pelo autor em sua obra “A Violência Totalitária”, traz à luz a violência própria dos Estados, dos partidos, do terrorismo, etc, que pretende impor um controle monopolizado, que leva à domesticação das paixões, à monotonia da equivalência generalizada. Aí encontra-se de forma mais incisiva a dominação e busca-se a preservação de um paradigma cultural, ou seja, como visto, a ordem estruturada e previsível, que permite o exercício do controle e está diretamente associada à idéia de poder, o qual se mostra necessário e impõe-se como legítimo, enquanto consentido por aqueles que a ele se submetem. E aí vale observar as ponderações de Etienne de La Boétie (1982) sobre essa submissão, a qual denominou “servidão voluntária”.
            La Boétie em seu Discurso da servidão voluntária” aborda a questão dos dominados como uma servidão que se perpetua, sem que aqueles que são dominados se dêem conta de sua situação e venham a envidar esforços no sentido de serem libertos. Ressalto que, embora a temática volte-se para um período de ação desumana pelo regime monárquico francês, considero-lhe atemporal.
         Para La Boétie uma explicação para o fato de o homem preferir a servidão à liberdade reside no fato de que ao ser educado na servidão e portanto afastado do conhecimento, o homem é desprovido de outra realidade que não seja a de servidão. Assim, entendo ser aceitável a comparação entre tais premissas e a ação da ideologia, bem como, o papel da violência dos poderes instituídos. Como visto, ao nascer, esse humano vivo é exposto à violência sistêmica de uma imposição cultural, a bem da verdade, sem a qual não sobreviveria.
            Retomando as categorias da violência sugeridas por Maffesoli, verifica-se que a violência anômica manifesta-se pelo desenraizamento coletivo de instituições sociais, o que produz uma situação de divergência ou conflito entre normas sociais, tornando-se difícil para o indivíduo respeita-las igualmente. É uma forma de proteger o corpo social da violência totalitária. Como exemplo pode-se verificar manifestações como os tumultos, os quebra-quebra, os arrastões, as turbas enfurecidas. Aparentemente, isto invalida a teoria de La Boétie, no entanto, a proposição de Maffesoli (2006) quanto ao que ele considera um vitalismo vigente na sociedade e ao qual chamou de “potência”, como ele próprio afirma “algo que não existe como forma pura, uma ‘irrealidade’ cuja única função é servir de revelador para situações corriqueiras que, elas sim, são bem ‘reais” (ibidem, p. 68).
            De acordo com Maffesoli:

[...] pelo levante, pela ação violenta, pela via democrática, pelo silêncio e pela abstenção, pelo desconhecimento desdenhoso, pelo humor ou pela ironia, múltiplas são as maneiras que o povo tem de se expressar sua potência soberana. E toda a arte do político é fazer com que essas expressões não assumam demasiada amplitude. O poder abstrato pode, em determinados pontos, triunfar. E é verdade que se pode colocar a questão de La Boétie: O que é que fundamenta a “servidão voluntária”? A resposta está, certamente, nessa segurança incorporada que dá ao corpo social a certeza de que, a longo prazo, o Príncipe, qualquer que seja a sua forma (aristocracia, tirania, democracia, etc.), é sempre tributário do veredito popular (ibidem, p. 89)

             Maffesoli aponta para o fato que essa potência, manifesta como uma “efervescência de vida”, algo que chama, ainda, de “vitalismo irreprimível”, seria a responsável pela resistência das massas e argumenta que:

Eu arriscaria dizer que existe no povo um “saber de fonte segura”, uma “direção certa”, à maneira heideggeriana, que faz dele uma entidade natural. Esta ultrapassa de muito duas diversas modulações históricas ou sociais. Visão meio mística, mas a única que permite explicar que, por meio das carnificinas e das guerras, das migrações e das desaparições, dos esplendores e das decadências, o animal humano continue a prosperar. (ibidem, p. 72)

            Assim, acredito que esse vitalismo, essa potência manifesta-se mesmo pela manifestação artística e de outros atos de aparente não-violência. Com base no pensamento de Bachelard (1989, p. 18) pode-se depreender que a imaginação consiste no poder de constituir imagens que ultrapassam a realidade, o que permite ao homem reconhecer no mundo imaginário uma realidade diversa daquela que percebe. Logo, a violência imperceptível aos homens pela ação da ideologia e que constrói o sentido de coletivo, de universalidade, a qual permeia a cultura, concretiza-se e atormenta-nos quando pela ação do pensamento imaginante, abre novas perspectivas de ordem, isto é, a violência toma formas diversas como expressão de ordens imaginadas, expressão de um vitalismo social.
            Uma terceira modalidade de violência consiste na violência banal, emprgada pela coletividade como forma de confrontar as formas de dominação. A violência banal apresenta em si a passividade da massa que não se integra ao instituído, todavia contrapõe-se a ele, subvertendo o poder, contudo sem integrar-se a qualquer ação política ou contestatória. É uma espécie de resistência pacífica, silenciosa, manifesta, por exemplo, nos grafites, nas pichações, na ironia, etc.

CONCLUSÃO

            Ao rever a discussão inicial do presente texto, percebe-se que uma análise mais depurada dos fenômenos violento, ultrapassa em muito os limites explicativos, criminológicos e criminais.
É necessário verificar o importante papel que a violência desempenha, como conceito próprio do estudo da cultura e dos estudos sobre a ideologia, e que está inserido no cerne desta mesma cultura como elemento de construção e descontrução de novos contextos sociais.
Para tal, acredito que as contribuições teóricas ofertadas por Michel Maffesoli, dentre outros autores, através de suas análises referentes ao fenômeno da violência e as proposições relativas às idéias do vitalismo social e da resistência das massas à violência totalitária, constituem significativos contributos à sociologia da contemporaneidade.
 
NOTAS
 
[1] Segundo Johnson (1997, p. 54), “controle social é um conceito que se refere às maneiras como os pensamentos, sentimentos, aparências e comportamentos de pessoas são regulados nos sistemas sociais”. Para Boudon e Bourricaud (1993, p. 101), o controle social apresenta-se como o “conjunto dos recursos simbólicos de que uma sociedade dispõe para assegurar a conformidade do comportamento de seus membros a um conjunto de regras e princípios prescritos e sancionados”.
[2] É na ação do simbólico, através das representações sociais que construímos, onde vamos encontrar uma lógica explicativa quanto à origem e à essência dos seres e das coisas, no mundo físico e social, e onde o processo de dominação inculca-se. Para Denise Jodelet, representação social “ é uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, tendo uma orientação prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 1989, p. 36). Jean-Claude Abric define a representação como “uma visão funcional do mundo, que, por sua vez, permite ao indivíduo ou ao grupo dar um sentido às suas condutas e compreender a realidade através de seu próprio sistema de referências, permitindo assim ao indivíduo de se adaptar e de encontrar um lugar nesta realidade” (ABRIC, 1998, p. 28).
 
REFERÊNCIAS 
 
ABRIC, Jean-Claude. A abordagem estrutural das representações sociais. In: PAREDES MOREIRA, Antonia Silva & OLIVEIRA, Denize Cristina de (orgs). Estudos interdisciplinares de representação social. Goiânia, GO: AB, 1998.
ARENDT, Hannah Sobre a violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1989
BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
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