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Resumo – A diversidade de
práticas violentas que se verifica na contemporaneidade, bem como, sua
intensificação quantitativa e qualitativa, têm sido alvo de estudos e acaloradas
discussões na academia, na busca por elementos teóricos que explicitem tal
crescimento e que contribuam na elaboração de políticas públicas visando seu
controle. A reflexão proposta neste artigo consiste na observação dos fenômenos
violentos, segundo uma perspectiva que ultrapasse as limitações encontradas em
uma análise meramente, criminal e criminológica, todavia, com um enfoque mais
antropológico, que favoreça o estudo da violência enquanto elemento cultural e
ideológico, que contribui na construção e mutação de novos contextos sociais.
Palavras-Chaves – Violência,
cultura, ideologia
INTRODUÇÃO
Temática frequente nos meios de comunicação, a violência tem sido um foco privilegiado para os estudos e discussões no meio acadêmico. E esta candência decorre da constatação que aquilo que se tem classificado como violento alastrou-se, diversificou-se, “violentizou-se” assoberbadamente.
A busca por explicações que justifiquem esse fato, bem como, a construção de políticas públicas para seu controle e redução, recaem, quase que invariavelmente, em pesquisas nos campos das Ciências Políticas, da Economia, do Direito e da Psicologia, com farta documentação histórica e bibliográfica, abundância de dados estatísticos e de referências geográficas. O conjunto desses estudos, normalmente, concentra-se em objetos como a criminalidade (internacional, urbana, rural, etc), as medidas de segurança territorial e pública, o terrorismo internacional, as guerras e os direitos humanos. No entanto, como constata Wieviorka (1997), essa diversidade de violências contemporâneas não são unificadas, todavia estão inseridas na cena local ou regional onde ocorrem.
Partindo do pressuposto de que toda ordem social instaurada tem em seu nascedouro a violência – em menor ou maior escala – e que nesse processo, há, de certa forma, a implosão dos valores, da ética, do direito e dos princípios da ordem anterior, instaurando-se certo caos, meu propósito neste artigo é refletir, dentro de uma perspectiva sociológica, sobre o fenômeno da violência enquanto construção cultural-ideológica.
Considerando que há uma preocupação permanente com a manifestação plural da violência – e só podemos analisá-la como um fenômeno plural –, em especial em sua forma criminal, entendo que, na contemporaneidade, a violência manifesta-se como elemento de transgressão a uma ordem colocada, bem como, forma de negociação e afirmação de novos grupamentos humanos. Contudo, dicotomicamente, há uma violência da ordem, simbólica e imperceptível pela própria ação da ideologia. Nossa proposta é que nesse conflito entre a ordem posta e a nova ordem que surge pela desconstrução da primeira, que reside a insegurança, o sentimento coletivo de medo. Para tal, parto da análise da idéia do violento enquanto classificação cultural, seu papel junto à ideologia no controle dos indivíduos, concluindo com a análise desse conflito.
A VIOLÊNCIA: UMA CONSTRUÇÃO CULTURAL
Segundo Wertham (1971), a “cadeia de violência” arrasta-se desde a noite dos tempos até a contemporaneidade, com o que corrobora Maffesoli (2005) ao analisar o mito bíblico do pecado original, observando que o princípio da história da humanidade ocorre com o mal, o assassinato, o sangue, e percebe-se sua presença na fundação de todas as estruturas sociais.
À luz da Antropologia, poder-se-ia dizer que essa violência primária ou fundadora, tem suas raízes mais concretas, com o homo hábilis, com uma alimentação onívora e carnívora, já em posição bipedal, liberando seus membros superiores, em especial, as mãos, para a utilização do fogo e instrumentos primitivos, como ocorre, posteriormente com o homo erectus. O homo erectus (aproximadamente, 1,7 milhões de anos) tem uma dieta carnívora, domina o fogo, passa a dispor de instrumentos – que depois aprimora – e institui os primeiros ritos. Assim, o homem passa a desenvolver mais intensamente a caça – não somente a animais maiores, todavia, aos próprios semelhante. Isto requer a cooperação mútua entre os caçadores, o que fomenta o surgimento de sistemas de comunicação simbólica, contribuindo para a transmissão do conhecimento.
Ressalto que, a partir desses sistemas de cooperação e de comunicação simbólica, com o surgimento de um corpo rudimentar de conhecimentos e experiências, aliado ao crescimento dos grupos humanos e à busca por novos campos de caça, eclodem as condições básicas para a manifestação da agressividade humana. Logo, na tentativa de dominar a natureza à sua volta – e, posteriormente, seus semelhantes –, sobrepujando a própria incompletude de seu aparato biológico, o homem desnaturalizou-se cada vez mais – pela própria ação da cultura – assumindo um comportamento antitético ao comportamento animal. Isto se manifesta de forma clara no manuseio dos instrumentos que produziu, mormente com o domínio da tecnologia para trabalhar metais, o que, simbolicamente, representa sua ruptura com a animalidade.
Essa ruptura, todavia, serviu para evidenciar o potencial de agressividade e destruição do homem, pela mais diversificadas formas de violência. Michaud (2001; p. 76), à luz das proposições de Bataille, assevera que:
O
animal humano que dispõe de instrumentos corta a continuidade do mundo em
objetos que podem ser manipulados e são destinados ao conhecimento. Há aí uma
primeira violência, fundadora, que o arranca da continuidade e da
imediaticidade, que o arranca da natureza e o faz entrar no excesso e na
transgressão (...) essa renúncia à animalidade não pára de suscitar a nostalgia
de uma impossível retorno a ela, que então desemboca numa outra violência,
aquela que, na festa, no sacrifício, na crueldade, na orgia guerreira da
destruição, procura incessantemente transgredir a humanidade através de outros
excessos ainda mais radicais. Em vez de traze-los de volta ao animal, essa
segunda violência afirma ainda mais radicalmente a natureza excessiva e a
potência de desregramento e de transgressão próprias da humanidade, fazendo-a
surgir como a única capaz de horror.
Considero
que essas proposições teóricas apontam para a idéia de que “a violência como
prática deliberada é atributo humano [...] considerada como um fenômeno social,
inerente a todo tipo de sociedade humana” ( MENDONÇA, 2005, p. 72), visto que,
os animais, no imediatismo de suas necessidades e ações, bem como, pela
ausência de interditos ético-morais, são simplesmente naturais em seus ataques
furiosos.
Entendo
que a análise e compreensão das manifestações plurais da violência na
contemporaneidade, ultrapassam os explicativos que a as teorias levantadas
pelos estudiosos das ciências citadas no início deste artigo, ainda que revelem
importantes elementos sobre as causas do fenômeno e sua manifestação nos
meandros da sociedade. Requerem seu estudo à luz da cultura em referência,
ainda que existam elementos universais na ação violenta em meio aos grupos
humanos.
Diante da concepção que a violência é
um elemento cultural, a etimologia do termo traz alguns pontos úteis à reflexão
sobre os parâmetros que definem o que é violento. De acordo com Michaud (2001;
p.8):
“Violência”
vem do latim violentia, que significa
violência, caráter violento ou bravio, força. O verbo violare significa tratar com violência, profanar, transgredir (grifo nosso). Tais termos
devem ser refereidos a vis, que quer
dizer força, vigor, potência, violência, emprego de força física, mas também
quantidade, abundância, essência ou caráter essencial de uma coisa. Mais
profundamente, a palavra vis
significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer sua força e
portanto a potência, o valor, a força vital [...] Tal força, em virtude de uma
coisa ou de um ser, é o que é, sem consideração de valor. Ela se torna
violência quando passa da medida ou
perturba uma ordem (grifo nosso)
Um
ponto evidenciado pela análise etimológica envidada por Michaud é que a idéia
de violência fica definida como “emprego de força desmedida”, isto é, algo que
ultrapassa, que transgride uma ordem estabelecida. Logo, as conceituações e
classificações daquilo que é violento, estão calcadas em parâmetros que regem a
vida dos indivíduos e que constituem essa chamada “ordem”. Michaud corrobora
com esta asseriva quando exprime que “na verdade, é um erro pensar que a
violência pode ser concebida e apreendida independentemente de critérios e de
pontos de vista” (ibidem, p. 12).
Uma
outra questão a ser considerada é a associação da idéia de violência a outras
como caos, conflito e transgressão, como podemos depreender das proposições de
George Sorel e Hanna Arendt. Sorel, discorrendo sobre a greve política, aborda
o emprego dos termos “força” e “violência” relativamente aos atos de autoridade
e aos atos de revolta, onde defende que a viol~encia deveria ser associada à
segunda concepção. De acordo com Sorel (1993; 146), “a força tem por objetivo
impor a organização de uma certa ordem social em que governa uma minoria, no
passo que a violência tende à destruição dessa ordem”. Arendt (1994; 14), ao
estudar o fenômeno face alguns aspectos da política no século XX, faz
referência a esse “elemento de imprevisibilidade total que encontramos no
instante em que nos aproximamos do âmbito da violência” e, como afirma Michaud
(2001; p.12), é “assimilada ao imprevisível, à ausência de forma, ao
desregramento absoluto”.
Assim,
se a violência é um conceito que transita pelo universo do previsível e,
sobretudo, consiste na representação daquilo que contraria ou questiona por um
período mais ou menos durável uma ordem considerada natural, sou levado a
concordar com a posição de Michaud (idem, p. 13, 14) ao afirmar que:
A violência é definida e entendida em
função de valores que constituem o sagrado do grupo de referência (grifo
meu). Apesar da diversidade dos grupos humanos, alguns valores recebem uma
adesão mais ampla, mas isto não pode dissimular a divergência e a
heterogeneidade das convicções. A idéia de violência cristaliza essa heterogeneidade
e essas divergências, tanto que o recurso a ela para apreender os fatos é o
indício mais seguro de que estão em causa valores importantes – e no centro de
um antagonismo.
Diante dessas reflexões e considerando a violência como
“comportamento de agressão”, deduzo que o fenômeno é algo próprio daquilo que
se costuma chamar “natureza humana” ou, melhor dizendo, é algo que decorre de
uma ordem construída, a qual chamamos cultura e a que estamos submetidos desde
o momento do nascimento.
Como
vimos, o ser humano não age de forma violenta, unicamente por necessidade de
alimento, por um institnto de defesa ou por não termos outros recursos de
negociação, como as demais espécies vivas. Considerando que ele é orientado em
seu comportamento social por um determinante invisível – manifesto por meio de um
simbolismo e expresso no conjunto das representações sociais, que permitem a
legitimação da ordem institucional, a ideologia – proponho que classificar um
ato como violento, de forma geral, é atribuir a ele um valor ético, mas,
sobretudo, instrumental, que permita o controle dos indivíduos por meio de
sistema de transgressões e penas, como veremos a seguir.
VIOLÊNCIA,
CONTROLE E IDEOLOGIA
A
expressão “sagrado do grupo” empregada por Michaud, é bem apropriada para
iniciar-se uma reflexão sobre a violência como elemento de controle dos
indivíduos¹. Guimarães (2005, p.2), referindo-se às
proposições teóricas de Castoriadis, afirma que:
Cada
sociedade elabora uma imagem do mundo fazendo um conjunto significante, onde
encontram o que importa para a vida da coletividade, a própria coletividade e
uma certa “ordem do mundo”. Esta imagem utiliza as “nervuras racionais do
dado”, mas as subordina a significações que
não dependem do racional, mas do imaginário.
Nessa
“ordem do mundo” verifica-se a ação da cultura, enquanto mecanismo de controle
(GEERTZ, 1989), conduzindo o indivíduo ao processo de socialização, estabelece
“planos, receitas, regras, instruções [...] – para governar o comportamento”
(ibidem, p. 56). Ora, esta ação invisível da cultura no propósito de colocar o
homem sob o poder das instituições sociais existentes (SOUSA FILHO, 2001),
funda-se, essencialmente, no sentimento do medo. De acordo com Sousa Filho:
Sua
difusão faz parte da instituição da dominação social e política sobre os
indivíduos [...] a construção do espaço da sociedade é sempre-já um
empreendimento marcado pelo controle social em que o medo é um ingrediente
fundamental. (ibidem, p. 14)
Entendendo que o processo de socialização do homem equivale a um sistema disciplinar onde os indivíduos são levados à naturalização e à consequente submissão - mesmo que inconsciente - a uma ordem estabelecida, reporto-me à assertiva de Foucault (1999, p. 140) a qual diz que "na existência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal". Deduzo, portanto, que na inserção do homem na vida em sociedade, a cultura impõe-lhe um conjunto de sanções e recompensas, não escritas, mas insertas na língua e todo o universo simbólico2 que está contido no imaginário social, sendo posteriormente transferido para as leis e códigos positivados.
Os
mitos mostram-se essenciais na conformação desse sistema. Para Campbell (2006,
s.p.), “aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos mitos. Eles são
histórias de nossa vida, de nossa busca da verdade, da busca do sentido de
estarmos vivos” Hoebel e Frost (1987, p. 353) afirmam que:
A
crença nos mitos é mais do que um auto-engano infantil; é uma segurança social
– um meio de educação e aprendizado, de manutenção de cultura [...] os mitos
são componentes importantes dos ritos de transição. Eles reafirmam os primeiros
princípios ou os postulados básicos sobre os quais os sistemas de crença de um
povo e sua estrutura social repousam. Os mitos expressam a natureza da
personalidade que a pessoa deve buscar retratar em si.
De
acordo com Eliade (1989, p. 12), “o mito conta uma história sagrada, relata um
acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos
começos”. Nas sociedades arcaicas, os mitos conduziam os homens a aprender “não
só como as coisas passaram a existir, mas também onde as encontrar e como
fazê-las ressurgir quando elas desaparecem” (ibidem, p. 19). Guimarães (1998,
p. 105), ao discorrer sobre as proposições de Eliade, afirma que:
Esse
“regresso às origens”, segundo Eliade, sobrevive no mundo moderno. Entre os
inúmeros exemplos, cita o mito do super-homem que atende às “nostalgias” do
homem moderno, pois, sabendo-se degradado, condenado, limitado, sonha
revelar-se um dia como um “herói”.
O
mito, assim, funcionaria como uma tentativa de recriar a “unidade perdida”,
como coloca Benjamin (1984) ao analisar o que chamou de história da Criação e
da Salvação na Mística Judaica. Guimarães (ibidem, p. 106) acrescenta ainda,
que:
O
Paraíso foi perdido por culpa dos homens que desobedeceram a Deus. É preciso
“lembrar” o Momento primordial, quando todos viviam bem antes do passado
original e para onde devemos retornar se formos fiéis à fé cristã e aos seus
mandamentos. O mito cristão, o mito acadêmico, o mito dos meios de comunicação
constroem suas próprias lembranças de modo a manter uma ordem pretensamente
natural, factual, objetiva em relação à história oficial.
E
prossegue:
A
memória, na qualidade de lembrança, faz com que as pessoas sejam manipuladas
pelos valores dos grupos no poder. Estes, ao conduzirem os acontecimentos
dentro de uma cronologia, criam uma genealogia e, com ela, um sentido único de
verdade. Poderíamos ver representados aqui os princípios do totalitarismo ou do
que se poderia chamar de uma sociedade de controle e de dominação.
Esse
tipo de violência foi conceituado por Maffesoli como “violência dos poderes
instituídos” ou, ainda, “violência totalitária”. De acordo com o comentário de
Guimarães (ibidem, p. 107) “para além do indivíduo, existe uma unidade abstrata
que neutraliza as diferenças, levando à submissão, à adaptação, e cada um se
torna um espectador passivo de seu próprio destino”.
Assim,
os mitos, especialmente, os mitos de castigo, preconizam a punição daqueles que
transgridem as normas sociais – aqueles que “pecam”, que burlam as ordens dos
deuses, das autoridades (que geralmente, recebem um caráter divino), dos
ancestrais, etc. Eles assumem, invariavelmente – enquanto perduram – um caráter
de sacralidade, algo que demanda do sobrenatural ou que está no patamar do
inquestionável.
Logo,
conforme propõe Sousa Filho (2001, p. 19):
O
medo assume papel fundamental na socialização dos indivíduos e funciona como
mecanismo de controle social, uma vez que se encontra ligdo à idéia de poder:
sejam os poderes humanos e sociais, sejam os poderes representados como
não-humanos, sobrenaturais, sagrados, a que se deve obediência e respeito
únicos, pois são responsáveis pela criação e existência do Mundo.
Esse
temor da punição contribui para o estabelecimento da categoria violência ou a
conceituação do violento. Retomando a expressão de Michaud “sagrado do grupo”,
à luz do raciocínio esboçado acerca dos mitos e do medo, entendo que violência
poderia, portanto, ser definida como algo que transgride ao estabelecido pelos
mitos fundamentais da cultura em referência. Se os mito estabelecem um aporte
simbólico (em geral, sagrado) que busca explicar a unidade, a realidade
original, logo, fomentam, também um sistema de punições àqueles inadaptados-
seja qual for a sanção – e daí, entendo que os mesmos mitos contribuem para a
idéia de violência como a rebelião ou transgressão de uma ordem estabelecida,
naturalizada e sacralizada.
Todavia,
mais do que rebelião, a violência torna-se algo necessário à própria
existência, enquanto limitação. Segundo Maffesoli (2004, p. 69-70):
[...]
Só existe vida se existe determinação. A vida não pode ser indefinida nem
infinita; ela precisa de limites. Neste sentido, a etimologia latina do termo determinatio é instrutiva. É o marco que
os romanos estabeleceram para delimitar a terra cultivada em relação ao
indefinido da terra inculta. O limite, portanto, permite ser. Permite que o
trigo brote [...] O marco constitui uma violência. Violência que é fonte de
vida. É o que qualquer um sabe empiricamente. É também este “saber incorporado”
que constitui a sociedade. Precisamos portanto, dar nomes aos bois: a violência
é um elemento essencial da construção simbólica do social: precisamente naquilo
em que ela nos liga, ou nos religa, à natureza. É algo que quesemos esquecer,
ou que negamos. Em “animal humano” há também “animal”. Em “natureza humana” há
também “natureza”.
É
interessante, ainda, analisar a sociologia da cultura desenvolvida por Pierre
Bourdieu que, segundo Domingos Sobrinho (2003, p. 66), “é indissociável de uma
teoria da dominação”. E prossegue afirmando:
Para
este autor, a cultura não é apenas um conjunto de obras, mas também a
elaboração de percepções sobre o mundo, uma maneira particular de descreve-lo e
compreendê-lo. Não é apenas a construção de sentidos, mas a disputa pelos
sentidos legítimos [...] a imposição da definição legítima sobre as coisas
pressupõe a existência de um poder que não atua pela coação, pela força física,
mas que se exerce sobre os corpos como que por magia. Bourdieu chamou de
“desconhecimento” o fato do “reconhecimento” da violência, que não é encarada
como tal.
Essa
“magia“ através da qual se impõe o sentido legítimo do mundo social, apóia-se
no consentimento do dominado ao exercício da dominação, como num ato de
cumplicidade, o que constitui a grande força da ideologia (SOUSA FILHO, 2001,
p. 74). Godelier (1981, p. 192-194) defende que há uma única forma de se
explicar o fato de indivíduos e de grupos dominados consentirem em sua própria
dominação:
É
preciso que esta dominação lhes apareça como um serviço que lhes prestam os
dominadores. Desde então o poder destes mostra-se legítimo e parece aos
dominados que é seu dever servir àqueles que os servem. É preciso, portanto,
que dominadores e dominados partilhem as mesmas representações, para que nasça
a força mais forte do pode de uns sobre os outros: um consentimento fundado no
reconhecimento dos benefícios e da legitimidade desse poder, um consenso
fundado no reconhecimento de sua necessidade.
Como
na ideologia a dominação não aparece, mas apresenta-se sob a forma de regra,
norma, absoluto, etc, logo, posso entender que esta “ocultação” da
violência, abordada por Bourdieu e
presente na imposição do sentido legítimo das coisas dentro do processo de
socialização do indivíduo, nada mais é do que a ação da ideologia, observando
que:
A
relação existente entre ideologia e cultura, pois apresenta a cultura como sempre-já a experiência da
dominação da sociedade sobre os indivíduos, vivida como natural, com base em
representações simbólicas diversas. A ideologia
é propriamente o que possibilita à cultura ser introjetada, assimilada,
compartilhada e conservada, sem que os seus padrões sejam questionados ou
recusados, em decorrência de não serem percebidos como constuídos, particulares, relativos e históricos, mas como dados, únicos, inevitáveis, necessários e
imutáveis – por meio do que se estabelece a dominação sobre os indivíduos
em diversas formas. (SOUSA FILHO, 2001, p. 33)
Percebe-se, portanto, o
conteúdo de violência simbólica que reveste o processo de aprendizagem social
ao qual o homem é submetido desde o seu nascimento. Essa violência consiste na
submissão à ordem simbólica da cultura e passa-lhe imperceptível pala ação da
ideologia. Neste sentido, Bourdieu (2001, p. 10), ao abordar as produções
simbólicas como instrumentos de dominação explicita que “as ideologias, por
oposição ao mito, produto coletivo e coletivamente apropriado, servem
interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais,
comuns ao conjunto do grupo” e prossegue afirmando que:
A cultura dominante contribui para a integração real da
classe dominante [...]; para a integração fictícia da sociedade no seu
conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas;
para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das
distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções (ibidem)
Entretanto, como propõe
Sousa Filho (ibidem, p. 65):
A
ideologia carrega uma herança dos mitos em sua maneira de representar a
realidade [...] O caráter coletivo e a natureza social da ideologia é
suficiente para garantir que não se
trata de um artifício das classes dominantes para enganar os dominados (grifo
meu). O que a ideologia oferece à sociedade o faz valendo-se da própria sociedade pelo apelo constante às
representações que tornam o real algo justificado, sagrado e necessário.
Assim,
apesar da aparente discordância entre os autores, o que me interessa ressaltar
é a ação da violência simbólica, perpetuando a dominação, submentendo
indivíduos e grupos a um projeto social dominante, o que se torna possível,
através da ideologia que torna esse projeto como algo universal, que detém os
interesses de toda a sociedade. Desta feita, a dominação é mascarada e
possibilita-se o controle dos indivíduos, pelo exercício do poder. Neste
sentido, a obra de Michel Foucault – em especial, “Vigiar e Punir” – traz
importantes considerações acerca da noção de controle social, cuja análise,
extrapola os limites da finalidade deste trabalho.
AS
EXPRESSÕES DA VIOLÊNCIA
Considero que as proposições teóricas expostas no
presente trabalho permitem uma reflexão acerca da violência que permeia a
sociedade.
Enquanto
elemento cultural, a violência, mormente em seu componente simbólico, está
inserido num contexto dicotômico de desconstrução e construção social. Seu
caráter construtivo reside exatamente na fundação da ordem pela ilusão do
caráter de naturalidade da cultura, através das formas simbólicas empregadas na
e pela dominação. Neste viés, alia-se à idéia de poder que, no pensamento de
Mendonça (2005, p. 81), “tem uma função real na ordem e, neste sentido,
inscreve-se, também a violência. Violência e poder são inseparáveis. A
violência marca o início do poder”. E neste sentido, poder e violência agem
pelo princípio da ordem, como uma necessidade de evitar o caos, de manter uma
ordem estruturada, ordenada, previsível, que aparenta perfeição. Compreende-se,
portanto, uma ação agregadora.
Por
outro lado, seu caráter destrutivo expressa a afirmação individual, algo que se
interpõe ao poder constituído, que se revela no campo da disputa pelo sentido
legítimo das coisas – como propõe Bourdieu -, que se mostra como que uma
rebelião aos princípios da dominação presentes na cultura. Mas é exatamente
nessa condição de “rebeldia” que se reconstrói o sentido de ordem. Nesse
sentido, é interessante observar as três modalidades de violência apresentadas
por Maffesoli (2005; 2006): a) a violência dos poderes instituídos; b) a
violência anômica; e c) a violência banal.
A
violência dos poderes instituídos, também nominada violência totalitária
analisada pelo autor em sua obra “A Violência Totalitária”, traz à luz a
violência própria dos Estados, dos partidos, do terrorismo, etc, que pretende
impor um controle monopolizado, que leva à domesticação das paixões, à
monotonia da equivalência generalizada. Aí encontra-se de forma mais incisiva a
dominação e busca-se a preservação de um paradigma cultural, ou seja, como
visto, a ordem estruturada e previsível, que permite o exercício do controle e
está diretamente associada à idéia de poder, o qual se mostra necessário e
impõe-se como legítimo, enquanto consentido por aqueles que a ele se submetem.
E aí vale observar as ponderações de Etienne de La Boétie (1982) sobre essa
submissão, a qual denominou “servidão voluntária”.
La Boétie em seu Discurso da
servidão voluntária” aborda a questão dos dominados como uma servidão que se
perpetua, sem que aqueles que são dominados se dêem conta de sua situação e
venham a envidar esforços no sentido de serem libertos. Ressalto que, embora a
temática volte-se para um período de ação desumana pelo regime monárquico
francês, considero-lhe atemporal.
Para
La Boétie uma
explicação para o fato de o homem preferir a servidão à liberdade reside no
fato de que ao ser educado na servidão e portanto afastado do conhecimento, o
homem é desprovido de outra realidade que não seja a de servidão. Assim,
entendo ser aceitável a comparação entre tais premissas e a ação da ideologia,
bem como, o papel da violência dos poderes instituídos. Como visto, ao nascer,
esse humano vivo é exposto à violência sistêmica de uma imposição cultural, a
bem da verdade, sem a qual não sobreviveria.
Retomando
as categorias da violência sugeridas por Maffesoli, verifica-se que a violência
anômica manifesta-se pelo desenraizamento coletivo de instituições sociais, o
que produz uma situação de divergência ou conflito entre normas sociais,
tornando-se difícil para o indivíduo respeita-las igualmente. É uma forma de
proteger o corpo social da violência totalitária. Como exemplo pode-se
verificar manifestações como os tumultos, os quebra-quebra, os arrastões, as
turbas enfurecidas. Aparentemente, isto invalida a teoria de La Boétie, no entanto, a
proposição de Maffesoli (2006) quanto ao que ele considera um vitalismo vigente
na sociedade e ao qual chamou de “potência”, como ele próprio afirma “algo que
não existe como forma pura, uma ‘irrealidade’ cuja única função é servir de
revelador para situações corriqueiras que, elas sim, são bem ‘reais” (ibidem,
p. 68).
De
acordo com Maffesoli:
[...]
pelo levante, pela ação violenta, pela via democrática, pelo silêncio e pela
abstenção, pelo desconhecimento desdenhoso, pelo humor ou pela ironia,
múltiplas são as maneiras que o povo tem de se expressar sua potência soberana.
E toda a arte do político é fazer com que essas expressões não assumam demasiada amplitude. O poder abstrato pode,
em determinados pontos, triunfar. E é verdade que se pode colocar a questão de La Boétie: O que é que
fundamenta a “servidão voluntária”? A resposta está, certamente, nessa
segurança incorporada que dá ao corpo social a certeza de que, a longo prazo, o
Príncipe, qualquer que seja a sua forma (aristocracia, tirania, democracia,
etc.), é sempre tributário do veredito popular (ibidem, p. 89)
Maffesoli
aponta para o fato que essa potência, manifesta como uma “efervescência de
vida”, algo que chama, ainda, de “vitalismo irreprimível”, seria a responsável
pela resistência das massas e argumenta que:
Eu
arriscaria dizer que existe no povo um “saber de fonte segura”, uma “direção
certa”, à maneira heideggeriana, que faz dele uma entidade natural. Esta ultrapassa de muito duas diversas modulações
históricas ou sociais. Visão meio mística, mas a única que permite explicar
que, por meio das carnificinas e das guerras, das migrações e das desaparições,
dos esplendores e das decadências, o animal humano continue a prosperar.
(ibidem, p. 72)
Assim,
acredito que esse vitalismo, essa potência manifesta-se mesmo pela manifestação
artística e de outros atos de aparente não-violência. Com base no pensamento de
Bachelard (1989, p. 18) pode-se depreender que a imaginação consiste no poder
de constituir imagens que ultrapassam a realidade, o que permite ao homem
reconhecer no mundo imaginário uma realidade diversa daquela que percebe. Logo,
a violência imperceptível aos homens pela ação da ideologia e que constrói o
sentido de coletivo, de universalidade, a qual permeia a cultura, concretiza-se
e atormenta-nos quando pela ação do pensamento imaginante, abre novas
perspectivas de ordem, isto é, a violência toma formas diversas como expressão
de ordens imaginadas, expressão de um vitalismo social.
Uma
terceira modalidade de violência consiste na violência banal, emprgada pela
coletividade como forma de confrontar as formas de dominação. A violência banal
apresenta em si a passividade da massa que não se integra ao instituído,
todavia contrapõe-se a ele, subvertendo o poder, contudo sem integrar-se a
qualquer ação política ou contestatória. É uma espécie de resistência pacífica,
silenciosa, manifesta, por exemplo, nos grafites, nas pichações, na ironia,
etc.
CONCLUSÃO
Ao rever a discussão inicial do presente texto, percebe-se
que uma análise mais depurada dos fenômenos violento, ultrapassa em muito os
limites explicativos, criminológicos e criminais.
É necessário verificar o
importante papel que a violência desempenha, como conceito próprio do estudo da
cultura e dos estudos sobre a ideologia, e que está inserido no cerne desta
mesma cultura como elemento de construção e descontrução de novos contextos
sociais.
Para tal, acredito que as
contribuições teóricas ofertadas por Michel Maffesoli, dentre outros autores,
através de suas análises referentes ao fenômeno da violência e as proposições
relativas às idéias do vitalismo social e da resistência das massas à violência
totalitária, constituem significativos contributos à sociologia da
contemporaneidade.
NOTAS
[1] Segundo Johnson (1997, p. 54),
“controle social é um conceito que se refere às maneiras como os pensamentos,
sentimentos, aparências e comportamentos de pessoas são regulados nos sistemas
sociais”. Para Boudon e Bourricaud (1993, p. 101), o controle social
apresenta-se como o “conjunto dos recursos simbólicos de que uma sociedade
dispõe para assegurar a conformidade do comportamento de seus membros a um
conjunto de regras e princípios prescritos e sancionados”.
[2] É na ação do simbólico, através das
representações sociais que construímos, onde vamos encontrar uma lógica
explicativa quanto à origem e à essência dos seres e das coisas, no mundo
físico e social, e onde o processo de dominação inculca-se. Para Denise
Jodelet, representação social “ é uma forma de conhecimento socialmente
elaborada e partilhada, tendo uma orientação prática e concorrendo para a
construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 1989, p. 36).
Jean-Claude Abric define a representação como “uma visão funcional do mundo,
que, por sua vez, permite ao indivíduo ou ao grupo dar um sentido às suas
condutas e compreender a realidade através de seu próprio sistema de
referências, permitindo assim ao indivíduo de se adaptar e de encontrar um
lugar nesta realidade” (ABRIC, 1998, p. 28).
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