O filme “Cidade de Deus”, realizado por Fernando Meirelles com base no livro de
mesmo nome do escritor Paulo Lins, retrata a história do tráfico de drogas e da
crescente violência em um bairro da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, a
partir de meados da década de 1960[1], estendendo-se
até ao início dos anos 1980. Dentro da narrativa – que se divide em três partes
principais, acompanhando o relato do personagem de nome “Buscapé”- ganha
destaque uma personagem que, inicialmente, é chamado de “Dadinho” e,
posteriormente, passa a chamar-se “Zé Pequeno”.
O esboço de uma análise acerca
da construção psicossocial de “Zé Pequeno” passa necessariamente pelo polêmico
conceito de exclusão ainda que, como afirma Wanderley, “pobreza e exclusão não
podem ser tomadas simplesmente como sinônimos de um mesmo fenômeno” (WANDERLEY,
2006, p. 20). Todavia, o menino “Dadinho” cresce dentro de um contexto
geográfico e social, desprovido da presença do Poder Público, a quem caberia
fomentar condições mínimas de assistência e convívio comunitário (saneamento,
saúde, educação, lazer, entre outros), o que aliado à pobreza, constitui um
ambiente altamente propício ao surgimento da criminalidade e da violência.
À falta de instâncias de gestão
e resolução de conflitos, bem como, de melhor negociação e de conciliação, a
violência passa a constituir a linguagem relacional e cotidiana, inclusive
entre crianças, que na falta de referenciais mais adequados, constituem como
ídolos e heróis, os criminosos locais, no caso do filme o “Trio Ternura”. Assim, o crime passa a constituir uma saída
para jovens pobres, desprovidos de maiores e melhores perspectivas, uma forma
cruel de inclusão e valorização pessoal, de “ter” e “ser”, mesmo que dentro dos
limites geográficos da favela.
Este era o mundo de um “Dadinho”
totalmente prejudicado em seu desenvolvimento com ser humano. A falta de
referências e de um lastro identitário, produzida pela ausência ou deficiência
de instituições como família, escola, igreja, trabalho e Estado, produziram em
sua vida:
- Deficiência em seu desenvolvimento mental e orgânico;
- Prejuízo à organização das atividades mentais; e
- Distorção das formas de perceber, compreender e se comportar diante do mundo, a partir da infância, levando-o a assumir uma postura violenta e criminosa.
Outro
elemento que se pode destacar nessa composição psicossocial, reside na atração
pela arma como um ícone, um símbolo do poder pessoal, principalmente, o poder
de matar, o que nos torna uma espécie de “deuses” com poder para matar ou
deixar viver e, por conseguinte, com forma de impor o reconhecimento e o respeito
alheio. Esse reconhecimento e respeito, não se prendem unicamente ao poder de
matar (que com o passar do tempo, banaliza o ato de assassinar alguém), mas,
também, no fato de ser o “herói” que protagoniza aventuras, que os outros – os
otários – não têm coragem, não são “machos” ou suficientemente espertos para
realizar. Com o tráfico de drogas e o domínio das bocas da favela, o agora “Zé
Pequeno”, “vê” a possibilidade de alcançar o respeito e o reconhecimento que
buscava. Assim, tornou-se necessário eliminar todo aquele que pusesse em risco
sua autoafirmação como o senhor daquela seara, temido e respeitado, o que se
pode perceber pela constante preocupação em apossar-se da boca da personagem
conhecida por “Cenoura”.
Esta
é a história de “Marcolas”, “Fernandinhos Beira-Mar” e tantos outros que
fizeram do crime e da arma seu referencial de poder, sua base de afirmação
pessoal, conquistaram fama e prestígio. Fica no ar a pergunta: quantos
“Dadinhos” ou “Zé Pequenos” serão necessários para que a sociedade acorde ao
clamor que vem das incontáveis “Cidades de Deus”, onde quem reina parece ser o
diabo.
[1] Provavelmente, o ano de 1967,
seguinte à terrível enchente que castigou o Rio de Janeiro, em 1966, quando considerável
número de pessoas morreu ou ficaram desabrigadas, em especial, aquelas que
habitavam em áreas cuja população compunha as camadas da sociedade, menos
privilegiadas economicamente.
REFERÊNCIA
WANDERLEY, Mariangela Belfiore. Refletindo sobre a noção de exclusão. In: SAWAIA, Bader (org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
WANDERLEY, Mariangela Belfiore. Refletindo sobre a noção de exclusão. In: SAWAIA, Bader (org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
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