segunda-feira, 25 de novembro de 2013

MILITARIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL: A POLÍCIA MILITAR E OS CENÁRIOS DE SUA CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-CULTURAL (PARTE 2)

A Polícia no Brasil Colônia
       Desde o período da colonização brasileira, através do sistema de capitanias hereditárias, percebe-se a concretude da “defesa dos dominantes”, detentores do poder econômico, observando-se a interferência de setores privados em uma área de interesse público, como no caso da segurança. Os fidalgos portugueses exploraríam a terra, mas, pagaríam seu quinhão à Coroa portuguesa, além do fato de que, indispensavelmente, teríam que organizar forças de defesa que protegessem as propriedades das ações de invasores estrangeiros e das ações dos nativos.
        Os donatários cediam as chamadas sesmarias a portugueses abastados que arcassem com a continuidade do processo de colonização, os sesmeiros, e estes por sua vez, deveríam prestar serviços ao donatário, caso ocorresse uma invasão.
             Isto representa que o sesmeiro, sempre que ocorresse uma ameaça de invasão ou esta se concretizasse deveria colocar à disposição, na defesa da empresa colonizadora, a força miliciana por ele constituída e mantida, com o propósito de manter seu patrimônio e seus interesses.

              Em 29 de março de 1549, com a instalação do primeiro Governo Geral do Brasil, de Tomé de Souza, na cidade de Salvador, de acordo com o registro de Borges Filho, “chegaram ao Brasil as primeiras instituições oficiais para administração da colônia: um ouvidor-geral, que se encarregaria dos negócios da justiça; para a fazenda havia um provedor-mor; da vigilância do litoral se ocuparia um capitão-mor da costa” (BORGES FILHO, 1994, p. 33-34). Os portugueses tinham, desde o século XVI, a tradição de manterem milícias – com o Regimento de 7 de agosto de 1549; a Lei das Armas, de 29 de dezembro de 1569; o Regimento de Ordenanças de 10 de maio de 1570 e a Provisão dos Capitães-Mores de 15 de maio de 1574 – e, esta tradição chega ao Brasil com Martim Afonso de Souza, antes mesmo do governo de Tomé de Souza.
            Tomé de Souza, na década de 1560, determinou que fosse realizado o primeiro policiamento militar, o qual seria efetivado nas estradas próximas às vilas. De acordo com Vieira:

Ante as circunstâncias, as tropas, além de guardarem o núcleo a que serviam, passaram a rondar as áreas bordejantes e pervagar os caminhos mais utilizados [...] Era, legitimamente, uma função policial, essa que exercia, porque nestes casos, agia policialmente. (VIEIRA, 1965, p. 10)

              As recém-criadas vilas do Brasil-Colônia, contavam, ainda, com os Almotacés (do árabe, almutasib), uma espécie de autoridade policial com a responsabilidade pela ordem pública. Segundo Gurgel:

O Juiz Almotacé era um cargo correspondente ao Edil romano, isto é, uma espécie de “juiz municipal” e “escrivão” auxiliar que preparava os processos para o juiz ordinário e/ou ouvicor, bem como processava as apelações e agravos destes últimos. O interessante é que podia decidir as causas cujo valor não ultrapassasse $600 réis, como também as pequenas contendas envolvendo açougues, padarias, pescarias, limpeza pública, edifícios eservidores. Em 26 de agosto de 1830, o imperador editou decreto abolindo o cargo de “Almotacé” e transferindo para as câmaras municipais todas as atribuições desses juízes. (GURGEL, p. 54, 2005)

           Como auxiliares dos almotacés e nomeados pelo Governador, haviam os alcaides-menores e meirinhos, cujas funções eram prescritas pelas Ordenações Manuelinas. De acordo com a descrição de Silva, dentre as funções correspondentes a esses cargos estavam:

- fiscalizar o cumprimento das leis referentes à proteção de pessoas e bens dos órfãos, dos ausentes, dos pródigos e furiosos;
- velar contra o abuso de armas proibidas;
- zelar pela execução das leis contra vagabundos e jogadores;
- fiscalizar os viajantes, os pobres, os mendigos e os teatros. (SILVA, 1998, p. 5, grifos do autor)

            Com o crescimento populacional e desenvolvimento da Colônia, decorrentes das múltiplas riquezas exploradas na terra, aumentaram os problemas decorrentes das relações sociais, enquanto, por outro lado, havia a necessidade de proteger o território contra a cobiça de outras nações. Diante do quadro de exigências quanto à segurança interna e externa, a “força de segurança” então existente mostrava-se insuficiente e, daí, as forças militares, frequentemente, ficavam encarregadas da manutenção da ordem interna das capitanias, ficando também a seu encargo, além dos serviços especificamente militares, as missões de policiamento. Essas forças consistiam em: tropas de 1ª linha ou Corpos Permanentes, que compunham o Exército, o qual possuía tropas integradas por portugueses pagos pela Coroa e sob as ordens diretas dos prepostos portugueses na estrutura do Governo Geral do Brasil. As tropas de 2ª Linha, também conhecidas como Corpos Auxiliares, Milícias ou Companhias de Ordenanças, complementavam a atuação das forças de 1ª linha, exercendo funções de polícia administrativa. As chamadas Companhias de Ordenanças foram organizadas nas cidades vilas e povoados, sendo possuidoras de um sistema de recrutamento universal, que obrigava a todos os vassalos a
empenharem-se na defesa da ordem e da tranqüilidade pública, bem como, no caso de conflitos com forças estrangeiras. Comandadas pelos Capitães-Mores, eram disciplinadas e mantinham rígida obediência ao poder político local.
            As tropas de 3ª Linha não eram Corpos Regulares, todavia grupos de pessoas, chamados “quadrilhas”, que exercíam funções de polícia administrativa, constituindo-se oficiais inferiores de justiça, os quais na ausência de um corpo regular de pólícia e ordenados por juízes e vereadores, “podíam durante três anos prender malfeitores, vadios, indivíduos de má fama e os estrangeiros” (CANCELLI, p. 1993; 34). Sua missão era atuar de forma preventiva, agindo, principalmente, contra os prostíbulos, casas de jogos, receptadores de objetos roubados, alcoviteiras e feiticeiras. Logo, é notório que o modelo policial brasileiro, em sua “pré-história” surge sob os signos da discriminação, da vinculação de suas forças às tropas regulares e da atuação no interesse das categorias detentoras do poder – e, consequentemente, buscando preservar as relações de dominação –, dando muito mais uma idéia de segurança privada, ultrapassando a preocupação com a segurança pública. Todavia, essa não é a única característica que se confirma pela evolução histórica do sistema policial brasileiro. Sua militarização pode ser conferida através do relato temporal-evolutivo das instituições, como observamos no período colonial.

              As Companhias de Ordenanças – que podem ser consideradas as “avós” da polícia militar brasileira – permaneceram no cenário da Segurança até 22 de março de 1766, quando a legislação militar portuguesa, redigida pelo Conde de Lippe, em obediência à determinação do Marquês de Pombal, transformou-as em Corpos Auxiliares. Antes disso, porém, com o passar do tempo foram sendo substituídas pelas Companhias de Dragões. Como esclarece Silva:
Das companhias de Ordenanças surgiram Tropas Pagas, nos termos da Carta Régia de 9 de novembro de 1709, originando em 18 de janeiro de 1719, as primeiras Companhias de Dragões, oriundas inicialmente de Portugal, assimilaram em forma de Companhia de Pedestres, anexou as tropas de Ordenanças já exaurindo-se, e foram tomando uma conformação de tropa nativa. Era o advento das Tropas Pagas, soldados profissionais organizados e adestrados e remunerados pelos serviços prestados, portanto mais aptos para impor a ordem interna. Tinham a incumbência de patrulhamento local, ronda e condução de presos, sob as ordens dos governadores (grifo do autor). (SILVA, 1998, p. 6)
        As Companhias de Dragões tiveram relevante participação nos episódios das invasões holandesa e francesa no Brasil, muito embora fossem posteriormente modificadas por editos de Felipe da Espanha, por D. João IV e D. João V.
              A evolução das forças de segurança levou à criação dos Regimentos Regulares de Cavalaria, dentre os quais encontrava-se o da Capitania das Minas Gerais, criado em 9 de junho de 1775, que, nas palavras de Silva, constituiu-se a “mais evidente organização de uma força policial, já efetuava policiamento rotineiro de prevenir e reprimir o crime” (SILVA, op cit, p. 7), Unidade a que pertenceu o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Essas forças públicas possuíam estrutura de organização militar e assumiam uma dupla função: militarmente, eram responsáveis pelo enfrentamento de insurreições e pela defesa da Colônia e, civilmente, exerciam a função policial de prevenir e reprimir a criminalidade.
             Já em 1756, o Marquês do Lavradio, Vice-Rei, havia determinado o emprego da cavalaria de sua guarda no patrulhamento da cidade do Rio de Janeiro, regulamentado a polícia municipal e organizado um regimento de milícias. Mas foi a partir da vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, que D. João VI organiza uma polícia regular no Rio de Janeiro, criando no dia 10 de maio de 1808, a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, recheada de múltiplas atribuições que em muito ultrapassavam a esfera da Segurança Pública.

                Seguindo o exemplo de Lisboa, onde em 1801, surgiu o Corpo Real de Polícia, que contava “com o efetivo de 1.200 homens de Cavalaria e Infantaria” (idem, p. 8), dia 13 de maio de 1809, por ato de D. João VI, foi instituída a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, com um efetivo inicial de 118 homens, os quais estavam distribuídos em três companhias de infantaria e uma de cavalaria, substituindo o Corpo de Quadrilheiros, formado por policiais sem qualificação e que unicamente, executavam uma ronda noturna. Seguia o modelo policial militar francês, fundado em duas bases: a primeira de cunho puramente militar, chamada de Maréchaussée, com o objetivo de coibir, a princípio, a indisciplina, a pilhagem, os crimes de todo tipo e a deserção, práticas que comumente aconteciam no seio da tropa em campanha. Conforme os estudos de Monet:

[...] a Maréchausée é territorizalizada a partir do século XVI. Suas ligações com as autoridades militares se afrouxam. Em contrapartida, ela recupera suas competências de polícia civil nos campos: repressão da pilhagem, do contrabando, dos contrabandistas de sal que fraudam a gabela, dos motins, das insurreições camponesas, das tomadas de grãos à força em período de penúria. Ela vigia populações itinerantes, prende os vagabundos, os gatunos, os desertores. Enfim, ela assegura o controle das regras relativas ao comércio, à higiene... Em suma, já preenche as funções da guarda civil dos dias atuais. (MONET, 2001, p. 49)

          A partir da Revolução Francesa e no Primeiro Império (século XIX), a forma das chamadas gendarmeries (polícias militares) foram introduzidas nos países conquistados por Napoleão Bonaparte.
           A segunda base de estruturação do modelo policial francês, repousa sobre a tenência de polícia na cidade de Paris, ofício criado no século XVII ( em 1667) por Luís XIV. O tenente de polícia de Paris, exercia múltiplas responsabilidades intimamente ligadas à administração municipal. Como descreve Monet:

Ele zela pela segurança pública, organiza a repressão da criminalidade, toma as disposições necessárias para evitar os incêndios e as epidemias ou ainda limitar os efeitos das inundações causadas pelas cheias do Sena. Ele manda guardar os mercados e tomar medidas que facilitam o abastecimento cotidiano da capital. Atento ao movimento das populações flutuantes, manda vigiar os hotéis e os quartos de aluguel, e acompanha o “estado de opinião”através do controle das gazetas e da livraria: cabe a ele impedir a distribuição dos panfletos e dos libelos, e de um modo geral acompanhar de perto os procedimentos de toda uma gama de suspeitos, considerados como adversários, ao mesmo tempo, do Trono e do Altar – judeus, protestantes, jansenistas... (ídem, p. 50)

                Monet prossegue esclarecendo que:

O espaço parisiense é estruturado, dividido em setores e em bairros, à frente dos quais operam comissários de polícia assistidos por inspetores [...] Todo um sistema de patrulhas a pé e a cavalo funciona dia e noite. Além disso, postos de guarda são implantados nos principais pontos estratégicos da capital. Assim, a metade de três mil homens de que dispõe o tenente geral de polícia é ocupada no serviço das patrulhas diurnas e noturnas ou
como reserva nos postos de guarda. (idem)

             Percebem-se claras similaridades entre o modelo policial francês e as instituições criadas por D. João VI no Brasil.
          Retomando a visão da Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, esta tinha o propósito de promover o policiamento da Corte, além de combater o contrabando e o descaminho, delitos que afetavam as finanças do tesouro real. Percebe-se, desta feita, que a instituição principiava sua dicotômica investidura policial e militar, considerando os fins para os quais fora criada.

O Período Imperial

           O projeto da Constituição de 1824 elaborado pela Assembleia Geral Constituinte, posteriormente alterada e outorgada por D. Pedro I em 25 de março daquele ano, incluía em seu Título XII, que tratava das Forças Armadas, dispositivos referentes à segurança pública, em seus artigos 228 e 233. O art. 228 dividia a Força Armada Terrestre em três classes: exército de linha, milícia e guardas policiais; o art. 233 atribuía às milícias a função de manutenção da segurança pública no interior das comarcas.
              Em 14 de junho de 1831, durante o período regencial, é criada em cada Distrito de Paz a Guarda Municipal. Todavia, em 18 de agosto daquele mesmo ano, publicou-se a lei que criava a Guarda Nacional e extinguia, no mesmo ato, as Guardas Municipais, os Corpos de Milícias e os Serviços de Ordenanças.
         Finalmente em 10 de outubro, ainda em 1831, uma lei reorganiza os Corpos de Guardas Municipais, agora com a terminologia “Permanentes”, ficando subordinada ao Ministro da Justiça e ao Comandante da Guarda Nacional.
         As Guardas Municipais foram criadas como tropas de infantaria, com estruturas rígidas de oficiais e praças, à semelhança das forças do Exército. Suas patrulhas circulavam dia e noite, a pé ou a cavalo, devendo manter uma postura sóbria, cortês para com todos os cidadãos e eram autorizados a empregar a “força necessária” contra aqueles que resistissem à prisão, à abordagem ou a serem observados.
         A mesma Carta Lei que criou esses Corpos, agregou-os aos Regimentos de Cavalaria das Tropas Pagas das Capitanias, bem como, autorizou aos Presidentes dos Conselhos das Províncias, criarem Corpos nas diversas Comarcas. Em 30 de novembro de 1841, foi proclamada a Lei de Meios do Império, que em seu artigo 3º, autorizava o Imperador a reorganizar o Corpo de Guardas Municipais da Corte do Rio de Janeiro, o que veio a ocorrer em 10 de julho de 1842, através do Regulamento nº 191, que estruturou o Corpo de Guardas Municipais Permanentes da Corte, como afirma Silva, “já ali denominado Corpo Policial” (SILVA, 1998, p.10).
              Esse Regulamento, também aplicado às Províncias e desses Corpos provincianos,
responsáveis pelo policiamento ostensivo preventivo e repressivo em seus territórios, originaram-se as Polícias Militares estaduais. Desta feita surgiram em 1825, os Corpos Policiais da Bahia e de Pernambuco; em 1831, São Paulo; em 1832, Paraíba e Alagoas; em 1834, Rio Grande do Norte; em 1835, Sergipe, Santa Catarina, Mato Grosso, Espírito Santo e Ceará; em 1836, Maranhão e Piauí; em 1837, Rio Grande do Sul e Amazonas; em 1854, Paraná; em 1858, Goiás e Minas Gerais [1].
           A atuação dos Corpos era essencialmente voltada aos interesses da aristocracia escravocrata, no período do 2º Império, tendo sua militarização exacerbada após a participação na Guerra do Paraguai. Com isso, a prática crescente da truculência e da violência correspondia ao tratamento dispensado às questões de segurança pública, como, por exemplo, o açoitamento era uma prática comum visando preservar os interesses econômicos dos proprietários e esta era a via por onde circulavam as questões de segurança pública.
            A Guarda Nacional, outra instituição que se empenhava na defesa interna, surgiu, sob a inspiração do modelo francês, no período regencial, em fase de grande agitação nacional, recebendo todo apoio do então Ministro da Justiça, Padre Diogo Antônio Feijó. Segundo Moura
(2007, s.p.), “através desta força foi possível não só conter as agitações lusas e nacionais, como absolver quaisquer articulações das tropas do Exército”. Sua criação fortaleceu as elites políticas locais, pois eram elas que compunham suas fileiras e que exerciam seu Comando, pela falta de confiança que o governo regencial tinha com relação ao Exército, cujos oficiais defendiam a volta de D. Pedro I, reivindicavam melhores soldos e mostravam-se contrários às discriminações racial e social que ocorriam, principalmente quanto às patentes mais baixas. A estratégia adotada pela Regência foi a redução do efetivo da Força Terrestre, que de maio a agosto de 1831, caiu de 30 mil para 10 mil homens, através de demissões e licenças de militares, além da cessação do recrutamento militar por tempo indeterminado. Assim, as guarnições de terra, as rondas policiais, o apoio às atividades da justiça eram executados pelos guardas nacionais.
             Em seu início a Guarda Nacional constituía um serviço de caráter obrigatório que alistava por um período de 4 anos, brasileiros com idade entre 21 e 60 anos e cidadãos filhos-família com renda para serem eleitores. Este serviço dava-se no município, nas paróquias e curatos, subordinado, hierarquicamente, aos Juízes de Paz, Criminais, Presidentes de Província e Ministro da Justiça, podendo, excepcionalmente, atuar como corpos destacados em serviço de guerra, fora dos limites das províncias.
               Em 1850 ocorreu a primeira reforma da Guarda e conforme explicita Moura:

Cada vez mais sua personalidade se aristocratiza, insinuando feições e festos de “milícia eleiçoeira”, voltando as costas para o povo. Suas regras de acesso aos postos de comando eludiram-se totalmente ao sistema eletivo, urdindo-se conchavos com autoridades, que passaram a nomear oficiais inferiores e subalternos. O pagamento do imposto do selo e emolumento das patentes de oficiais guardas nacionais, tornou-se fonte de renda para a Guarda Nacional. Conforme gradualmente o sistema eletivo era suprimido, dava lugar à compra de patentes de oficiais. (MOURA, 1999, s.p.)
 
          Originalmente criada para atuar na contenção dos levantes internos durante o período regencial, a Guarda Nacional passou, cada vez mais, a exercer a função de polícia, mesmo com a existência de outros Corpos Policiais, sendo os únicos remunerados. Cabia-lhes, além da manutenção da ordem nas cidades, a repressão às insurreições e fugas de escravos nas propriedades, perseguindo aqueles que obtinham êxito na fuga. Moura assevera que:

A reforma de 1850 não alterou este caráter de policiamento ordinário e não trouxe aos recrutados esperanças de remuneração. Contrariamente, serviu para ligar mais intimamente a instituição à epiderme do mandonismo local, cujos grupos rurais dominantes passaram a contar com mais um instrumento de força e desmando [...] A farda e a bandeira que outrora seduziram homens voluntariosos em torno de sentimentos da terra, se transformaram em instrumento de perseguição e punição aos desafetos. A tal ponto que muitos senhores de lavouras e escravos serviram-se da acusação de vadiagem para prenderem e levarem ao serviço obrigatório da Guarda Nacional trabalhadores com os quais tiveram contendas de trabalho. A cor política de um determinado proprietário local também podia ser motivo para o recrutamento de seus trabalhadores, dependentes e agregados. (grifos nossos) (MOURA, 2007, s. p.)

             É perceptível que a Guarda Nacional tornou-se forte elemento de dominação, a grande instituição patrimonial do Império, que vinculou o governo e os proprietários rurais (cf. CARVALHO, 2007, p. 10). E neste sentido, faço um parêntese para explicitar o sentido no qual emprego dos termos “dominação” e “patrimonial”. Entendo dominação, neste caso, segundo a proposição teórica de Weber que a conceitua como:
 
[...] a probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato [e que] (inserção minha) pode fundar-se em diversos motivos de submissão. Pode depender de uma constelação de interesses, ou seja, de considerações utilitárias de vantagens e inconvenientes pó parte daquele que obedece. (WEBER, 2004, p. 128)
 
               O termo patrimonial na assertiva acima tem a conotação emprestada por Holanda (2004), com base em seus estudos sobre Weber. De acordo com Holanda, no Brasil, onde desde os tempos coloniais imperava o tipo de família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização, gerou um desequilíbrio social que perdura até os dias atuais. Holanda propõe que:

Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam
justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização da funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. (HOLANDA, 2004, p. 145-146)

                Retomando a questão da Guarda Nacional, o que se pode asseverar é que, com o passar do tempo, ela foi se tornando um elemento de cooptação, das elites rurais. Seus oficiais não eram remunerados, pagavam por suas patentes e, via de regra, desembolsavam recursos para fardar as tropas. A escolha desses oficiais que, anteriormente, era feita por meio de eleição, foi substituída pouco a pouco pela distribuição indiscriminada de patentes, observando-se unicamente, a hierarquia social e econômica daqueles que as recebiam, em troca do apoio das tropas ao senhoriato, visando o controle da população local. Por situação semelhante, passava o que, hoje, denomina-se “Polícia Judiciária”, pois os delegados, subdelegados e seus respectivos substitutos, eram também, como afirma Carvalho, “autoridades patrimoniais, uma vez que exerciam serviços públicos gratuitamente” (CARVALHO, op cit, p. 10).
            Este era o quadro que, à época, contribuía para manter vivo o mandonismo no cerne da sociedade brasileira. Carvalho, fundamentando-se na obra clássica de Victor Nunes Leal, “Coronelismo, Enxada e Voto”, conceitua mandonismo como “um sistema local de estruturas oligárquicas e personalizadas de poder”(ibidem, p. 3) e prossegue afirmando:
 
O mandão, o potentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivíduo, é aquele que, em função do controle de algum recurso estratégico, em geral a posse da terra, exerce sobre a população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de ter livre acesso ao mercado e à sociedade política. O mandonismo não é um sistema, é uma característica da política tradicional. Existe desde o início da colonização e sobrevive ainda hoje em regiões isoladas. (ibidem)

             No período republicano, esse mandonismo expressou-se, de forma particular, através do fenômeno do coronelismo, o qual teve forte influência no contexto da Segurança Pública. 



NOTA
 
[1] Minas Gerais após a realização de pesquisas históricas, oficializou o ano de 1775 como o ano de criação de seu Corpo Policial.

REFERÊNCIAS

BORGES FILHO, Nilson. Os militares no poder. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994.
CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia na era Vargas. Brasília: UNB, 2003.
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão
conceitual. In: Dados, rev. de Sociologia, Rio de Janeiro, v. 40, n. 2, 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0011-52581997000200003&script=sci_arttext. Acesso em: 31 jan. 2007.

GURGEL, Ibsen. Histórico da administração judiciária brasileira. In: Rev. CEJ, Brasília, n. 30, p. 50-65, jul./set., 2005.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 5. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.
MONET, Jean-Claude. Polícias e sociedades na Europa. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. (Série Polícia e Sociedade, n. 3)
MOURA, Denise. A farda do tendeiro: cotidiano e recrutamento no Império. In: Rev. de História Regional, v. 4, n. 1, 1999. Disponível em: http://www.uepg.br/rhr/v4n1/denise.htm. Acesso em: 30 jan. 2007. 
SILVA, Valdenor Félix. História da Segurança Pública. Natal, 1998, 32 p. Plano de ensino da disciplina História da Segurança Pública – Curso de Especialização em Segurança Pública / UERN / Academia Cel Milton Freire.
VIEIRA, Hermes. Formação histórica da polícia de São Paulo. São Paulo: Serviço Gráfico de Segurança Pública, 1965.
WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, Gabriel (org.); FERNANDES, Florestan (coord.). Weber. 7. ed. São Paulo: Editora Ática, 2004. p. 128-141. (Coleção Grandes Cientistas Sociais) 

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