segunda-feira, 28 de outubro de 2013

DIREITOS HUMANOS E POLÍCIA: meandros de uma relação complexa



INTRODUÇÃO

A busca pelo estabelecimento de um estado de paz social, pleno de relações harmônicas e fraternais, que fomentem a qualidade de vida, o bem-estar dos indivíduos e, por conseguinte, o desenvolvimento plural do país, tem sido uma constante nos discursos de amplos segmentos de nossa sociedade.
Todavia, observa-se que, nos últimos vinte anos, em várias partes do território nacional, tem ocorrido o crescimento de fenômenos como a violência, a criminalidade e a desigualdade social, resultantes, dentre outros fatores, de uma crise ética que aflige, principalmente, categorias que detêm generosas cotas de poder (político, cultural e simbólico) e de responsabilidade na gestão desse espetacular complexo de raças, paisagens geográficas, econômicas e culturais, chamado Brasil.
O uso indevido e mesmo criminoso de prerrogativas funcionais e do poder econômico, aliado à impunidade dos agentes da chamada “criminalidade dourada” e à ausência ou fragilidade das políticas públicas voltadas aos segmentos sociais menos favorecidos, têm provocado sérios comprometimentos no que tange à efetivação dos direitos individuais e coletivos, previstos na Carta Magna de 1988, particularmente, em seus artigos 5º e 6º.  Em razão destes fatos, cresce o descrédito dos poderes constituídos e de diversas instituições públicas, o que se pode considerar uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, vez que abre espaços à ação de grupos comprometidos com o narcotráfico e outras facções do crime organizado, à desobediência civil e ao surgimento de movimentos outros que coloquem em risco, assoberbadamente, a Ordem e a Tranqüilidade Pública.
 Apesar de parecer um discurso alarmista e apocalíptico, dissociado da realidade, torna-se notório que a maior amplitude e visibilidade dos fenômenos anteriormente citados, têm provocado profundos e sérios reflexos na vida cotidiana dos brasileiros, colocando em risco o uso e gozo de direitos fundamentais inerentes à condição humana e de alguém que, sem sofrer distinção de qualquer natureza, está sob a tutela da Constituição Federal, onde estão consignados os princípios fundamentais da República e seus objetivos fundamentais.
Dentro do estudo dessas ameaças aos Direitos e Garantias Fundamentais das pessoas, uma das temáticas mais candentes reside na ação das polícias estaduais, instrumentos do Estado responsáveis pela aplicação da Lei. E a ressonância das violações praticadas por esses agentes estatais, além de refletir a urgente necessidade de mudanças nas estruturas dos órgãos policiais, mormente, em seus aspectos ideológicos e administrativos, espelha a omissão com que se houve o poder público, de forma mais específica, na formulação de um novo modelo de polícia adequado à nova realidade brasileira, fundado no respeito aos direitos humanos e à cidadania.
Ainda que o Plano Nacional de Segurança Pública (PNPS), lançado em 2003, estabeleça diretrizes para a construção de uma nova polícia e o Ministério da Justiça, através da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), venha investindo pesadamente em ações didático-pedagógicas voltadas ao estabelecimento de uma política de reconhecimento e respeito aos direitos humanos, é evidente que as mudanças ocorridas não conseguiram produzir resultados tão significativos nesta área. Isto se torna perceptível, considerando o elenco de acontecimentos, fartamente divulgados pela mídia, onde policiais protagonizaram (e protagonizam) momentos de clara violação dos direitos fundamentais de indivíduos que, em sua maioria, são negros, residentes em áreas pauperizadas e que, muitas vezes, sequer apresentam ficha criminal ou envolvimento com atividades criminosas.
Ainda que as instituições policiais apresentem em sua defesa o argumento de que esses atos são praticados por uma minoria de seus integrantes, não há como questionar que tais práticas ferem diretamente os estatutos internacionais de direitos humanos, em muitos dos quais o Brasil é signatário, entre eles o Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (1979). Contudo, há uma pergunta que não quer calar: se o PNSP e a SENASP prevêem e realizam investimentos na educação em Direitos Humanos, inclusive com o recente lançamento do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, qual seria a justificativa para a conduta truculenta e violadora de direitos, adotada pelos policiais brasileiros?
Acreditamos que a resposta para esta inquirição não reside em um único explicativo, mas num conjunto de variáveis que afetam a conduta profissional dos policiais. O propósito deste trabalho não consiste em esgotar a discussão sobre o assunto, dada sua complexidade e abrangência multidisciplinar. Porém, estaremos nos detendo na análise da aplicação dos direitos humanos, dentro do contexto da Polícia Militar e, mais especificamente, no Estado do Rio Grande do Norte.

1 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A promulgação da Constituição Federal de 1988 constituiu-se um marco na luta por um país mais justo, igualitário e, sobretudo, onde os Direitos Humanos Fundamentais fossem respeitados.
O país, então recém saído de uma ditadura, ainda guardava em sua memória imagens, testemunhos e lembranças dos horrores praticados não só pelas forças oficiais mas, também, por muitos que compunham grupos políticos de oposição ao regime, em sua “luta pela liberdade”. E, neste caso, é interessante ressaltar que, embora as cobranças e acusações quanto à prática de abusos e agressões contra os direitos de muitos cidadãos recaiam quase sempre sobre as Forças Armadas e as polícias estaduais, essas violações aconteceram de ambos os lados da história. O que se presenciava, na verdade, era um confronto político-ideológico no qual, ambos os lados, tentavam justificar seus atos violentos e abusivos pelos argumentos da “Defesa Nacional” e da “luta pela Democracia”.
            Após um período de vinte e um anos de regime militar ditatorial, vigente desde 1964, principiou-se no país o processo de volta à democracia, o que requeria “um novo código que refizesse o pacto político-social” (PIOVESAN, 1996, p. 55). Esse estatuto foi a Carta de 1988 que, segundo Piovesan:

[...] institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil [e] (inserção nossa) introduz também indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando=se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotado no Brasil. (ibid)


           
Logo, compreende-se que a Constituição de 1988 passou a constituir um divisor de águas na política brasileira de direitos humanos, sugerindo assim, uma mudança de postura tanto ao reconhecimento de obrigações internacional, quanto à revisão generalizada de outros estatutos legais, de sistemas e instituições, permitindo desta feita, que fosse assegurado o exercício dos direitos sociais e individuais por todos. Mais ainda, o art. 1º do texto constitucional elenca os princípios sobre o qual está fundamentado o Estado Democrático de Direito vigente no Brasil, onde ressaltamos os incisos II e III, os quais citam a cidadania e a dignidade da pessoa humana como dois desses pilares.
Neste trabalho, consideramos a cidadania como a condição atribuída ao indivíduo que lhe permite participar da vida social, econômica, cultural e política do país, expressa, fundamentalmente, no uso e gozo de seus direitos sociais[1] e políticos (arts. 14 – 16). Consideramos a dignidade como condição inerente a todo ser humano e que diz respeito ao “mínimo existencial”, isto é, ao estabelecimento de condições mínimas que permitam a sobrevivência humana. Mas, é preciso sublinhar que a dignidade ultrapassa elementos meramente ligados à sobrevivência do ser humano. Como afirma Dallari:

Para os seres humanos não pode haver coisa mais valiosa do que a pessoa humana. Essa pessoa, por suas características naturais, pode ser dotada de inteligência, consciência e vontade, por ser mais do que uma simples porção de matéria, tem uma dignidade que a coloca acima de todas as coisas da natureza. Mesmo as teorias chamadas materialistas, que não querem aceitar a espiritualidade da pessoa humana, sempre foram forçadas a reconhecer que existe em todos os seres humanos uma parte não-material. Existe uma dignidade inerente à condição humana, e a preservação dessa dignidade faz parte dos direitos humanos. (DALLARI, 2000, s.p.)


            Assim, pode-se entender que estes dois princípios fundamentais constituem paradigmas fortes no estabelecimento de toda e qualquer ação estatal, o que inclui as ações policiais. Basta observar que contém em si, a expressão dos artigos que servem de “norte” na composição de uma segurança pública mais eficiente, eficaz e efetiva. E esta assertiva repousa em uma visão sistêmica, ou seja, as questões relativas à Segurança Pública não se prendem unicamente à atuação da polícia, entretanto, encampam uma diversidade de atores, dentro de uma complexa rede de relacionamentos, onde o exercício dos direitos fundamentais e sociais deve ser efetivado.
Logo, quando tomamos o texto constitucional em seu art. 144 e encontramos a segurança pública como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, podemos compreender que cabe ao Estado, através dos órgãos que integram o Sistema de Justiça Criminal e o (Sub) Sistema de Segurança Pública, a obrigação de garantir, por todos os meios disponíveis, a preservação da vida dos indivíduos, sua liberdade, a igualdade entre eles, sua segurança e sua propriedade, bem como, fomentar-lhes as condições para seu desenvolvimento como membros da sociedade, através da garantia de seus direitos sociais.
Por outro lado, o mesmo artigo imputa a todos, os direitos aos quais nos referimos. Fizemos questão de grifar o vocábulo todos, dado o caráter de universalidade que alcança esses mesmos direitos, e que assegura o exercício do princípio da isonomia. Convém frisar que há, ainda, o art. 144 refere-se a uma responsabilidade coletiva, no escopo garantir a permanência dos laços de fraternidade social, a liberdade consciente e responsável, bem como, a igualdade de direitos[2], o que forma o tríplice supedâneo para a prática da Democracia e o pleno desenvolvimento. Portanto, é inegável que a nova idéia de segurança pública preconizada na Constituição Federal, passou a exigir uma polícia diferente, que atue com a visão humanitária, aliada à técnica; o emprego de força regulado pelas normas internacionais de direitos humanos e respeitando, de forma permanente, a dignidade humana e a cidadania.
Entendemos que apesar de alguma evolução, as práticas policiais ainda não atendem na totalidade essas características de uma polícia alicerçada nos princípios democráticos e humanitários. Mas, será que esse estado de coisas constitui-se, unicamente, por culpa dos policiais que são homens violentos, grosseiros e maus?
Será que estes mesmos policiais têm sido alvo de respeito aos seus direitos fundamentais e a sua dignidade? Por que é tão difícil a construção de uma nova polícia?
Estas são questões que brotam ao estudarmos a (difícil) relação entre a polícia brasileira e os direitos humanos fundamentais, na nova realidade sócio-política do país.

2 OS DIREITOS HUMANOS NA POLÍCIA

A recorrência de situações que expressam a violência policial e violações dos direitos fundamentais dos indivíduos aponta para um fato concreto e contemporâneo: há uma exigência cada vez maior no tocante a uma segurança pública compatível com o Estado Democrático de Direito, enquanto os agentes policiais parecem não acompanhar este movimento.         Soares (2003) adverte que em meio a todo o processo de reforma institucional ocorrido na sociedade brasileira, a polícia foi esquecida nas sombras do passado autoritário, fato que classificou como uma “omissão histórica” e que trouxe a reboque, um vasto acervo de hábitos que remontam aos períodos de exceção, entre eles, a violência arbitrária e a tortura.
            Esse cenário tornou-se o nascedouro de incontáveis trabalhos nos quais, pesquisadores de diversas áreas do conhecimento tentaram estabelecer as raízes desse problema. Obviamente, que não nos lançaremos a essa tarefa, pois seria uma insanidade tentar esmiuçar questões de tamanha complexidade dentro dos limites desse texto. Porém, buscaremos refletir, conforme proposto na introdução, sobre dois pontos que julgamos básicos na análise das violações aos direitos humanos praticadas por integrantes das instituições policiais brasileiras. O primeiro deles trata da polícia enquanto órgão de defesa do Estado e não do cidadão, enquanto o segundo ponto, aborda a questão do respeito aos direitos humanos dos policiais militares.

2.1 A POLÍCIA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA DO ESTADO
           
A evolução histórica do segmento fardado da segurança pública, principia no Brasil Colônia, com a criação das Companhias de Ordenanças conforme a Carta Régia de 1559 que, no dizer de Silva, “mantinham a ordem pública nas cidades, vilas e paróquias. Disciplinadas e obedientes ao poder público local (grifo do autor), constituíam fatores fundamentais da ordem interna e defesa da pátria nascente (grifo nosso) (SILVA, 1998, p. 6). Seguiram-se às Companhias de Ordenanças, as Tropas Pagas (1709) que originaram, posteriormente, as Companhias de Dragões (1719) e, nas Capitanias mais desenvolvidas, surgiram os Regimentos Regulares de Cavalaria, todas elas, forças com características militares, ainda que tivessem em suas ações um componente de ordem civil, como esclarece Silva:

Ressalte-se que, já na sua gênese, as “Forças Públicas” estruturavam-se como organização militar e tinham uma dupla função:
Civil: era a função policial rotineira de prevenir e reprimir o crime;
Militar: era a função esporádica de enfrentamento das insurreições e defesa da Colônia. (grifo do autor) (SILVA, op cit, p. 7)


            Segundo a maioria dos historiadores da segurança pública no Brasil, estas foram as instituições que compuseram as raízes da Polícia Militar.
            Esta realidade de militarização de nossas forças públicas de segurança, perdurou em todos os períodos da história brasileira, representando o emprego das Corporações policiais muito mais na defesa do Estado e de uma Ordem, segundo o entendimento das elites, conforme seus interesses, do que na preservação da Ordem, segundo os interesses coletivos do povo, atentando para os direitos fundamentais do cidadão.
            Compreendendo que um estudo dessa condição redundaria em alongar-nos demasiadamente no assunto, extrapolando os propósitos deste trabalho, deteremo-nos na análise do período histórico posterior ao Golpe de 1964, mais próximo à realidade contemporânea.
            Em 31 de março de 1964, é deflagrado um golpe militar no país que depôs o então Presidente João Goulart, após intenso período agitação política. Instaura-se assim, no Brasil, um regime ditatorial que iria durar cerca de 20 anos.
Os anos do governo de exceção ocorridos após o golpe militar de 1964, vieram apenas confirmar e fortalecer a tendência militarizante existente no sistema policial brasileiro desde o seu nascedouro. A implantação do regime contou com forte presença das forças policiais dos Estados, conforme registrou Borges Filho ao afirmar que:

Tanto para o dispositivo militar de João Goulart, que contava com a lealdade das policiais estaduais de governadores simpáticos ao governo federal, quanto para o esquema golpista, as PPMM eram peças fundamentais no quadro conspiratório.(BORGES FILHO, 1994, p. 67)

O autor prossegue apresentando fatores que asseveravam à Polícia Militar este caráter imprescindível ao sucesso pleno do movimento revolucionário:

Alguns fatores, tidos como materiais, colocam as PPMM como forças mais aptas para a ação militar urbana: a) o contingente das policias estaduais é na maioria dos Estados, superior ao das FFAA na região; b) o armamento policial, mais leve, é o mais adequado para controlar e reprimir a “perturbação da ordem”; c) o policial militar, tendo em vista a sua ação permanente no policiamento ostensivo, está mais bem preparado para controlar e combater as forças de oposição; d) por deterem uma menor dose de politização, os policiais militares estão mais isentos do contágio político-ideológico e, portanto, mais acessíveis às ordens de comando numa operação de grave perturbação da ordem.(idem)


Com a deposição do Presidente João Goulart, iniciou-se um período de intensa perseguição política com a instauração da violência, do arbítrio e da tortura como “instrumentos de expurgo social” pelo novo regime. Muitos desses abusos, eram “legalizados” através dos Atos Institucionais. Como observa Huggins:

Os militares brasileiros consolidaram seu poder mediante uma série de Atos Institucionais (Ais) draconianos, a “Constituição” de facto do novo regime militar [...] O AI-1 estabeleceu certas consições em que os direitos políticos individuais poderiam ser suprimidos e aboliu outros direitos civis de extensa lista de cidadãos, particularmente aqueles que representavam obstáculo à vasta campanha de “limpeza” recém iniciada pelo Estado [...] A limpeza foi levada a cabo por todo o país mediante varredura das ruas pelas polícias e Forças Armadas, incluindo amplas buscas, capturas e prisões em massa. (HUGGINS, 1998, passim)


Neste período, através do Ato Institucional nº 1 (AI-1), foram instituídos os Inquéritos Policiais Militares como previsto em seus artigos 7º e 8º, procedimentos que constituíram fortes armas para a prática de arbítrio, como se percebe nas considerações de Alves:

Os IPMs tornaram-se uma forte de poder de facto para o grupo de coronéis designados para chefiar ou coordenar as investigações. Configuravam o primeiro núcleo de um Aparato Repressivo em germinação e o início de um grupo de pressão de oficiais de linha-dura no interior do Estado de Segurança Nacional [...] Os IPMs também passaram a servir a interesses políticos locais. Certos políticos da UDN que freqüentemente perdiam eleições passaram a valer-se do recuso de acusar seus adversários políticos de atividades “subversivas”, envolvendo-os em algum IPM para eliminar a concorrência indesejada [...] Como tais acusações não precisavam submeter-se – especialmente no caso de uma cassação – ao teste da comprovação em tribunal e à decisão de um júri neutro, este tipo de luta local pelo poder tornou-se freqüente. Carentes de qualquer fundamentação jurídica formal, os IPMs não se submetiam a regras fixas de comprovação. Os próprios coronéis freqüentemente estabeleciam os preceitos legais sobre os quais deviam basear suas decisões. O testemunho da “opinião pública” era suficiente, em certos casos, para provar as atividades subversivas ou revolucionárias que justificavam punição: “Quando o fato é público e notório, este independe de provas, conforme preceito geral do direito, que aboliu o sistema de certeza legal, libertando o julgador de preconceitos textuais”. (ALVES, 2005, p. 69-70)


            Estes elementos históricos evidenciam uma questão que demanda ser refletida no estudo ora desenvolvido: como esperar um comportamento isento, desprovido das paixões de momento e focado na legalidade dentro da ação policial militar, considerando toda a herança de arbítrio da qual foram depositários durante o regime ditatorial? Percebe-se com nitidez que a prática dos IPMs, fortalecia as categorias dominantes da sociedade no exercício do poder local, isto é, pelas oligarquias representadas por empresários, grandes produtores rurais (latifundiários) e facções políticas mais conservadoras, exatamente aquelas que deram a sustentação no lado civil do movimento golpista. O cenário, portanto, difere pouco daquele apresentado no período da República Velha, a fase dos coronéis. Assim, o sistema, ampliava sua rede de controle e repressão sobre os segmentos mais progressistas da sociedade, permitindo estabelecer elementos de poder local que fossem favoráveis ao regime e, ao mesmo tempo, dominando as instâncias de segurança pública de caráter regional. Esse controle e repressão dava-se por intermédio de um conjunto de medidas, que envolviam o poder local. Como observa Alves:

A campanha de repressão consistia não só na institucionalização da tortura, como na técnica de interrogatório e controle político, no desenvolvimento de programas  de pacificação e blitz, e na implantação de uma vasta rede policial  para levar a cabo os programas do Aparato Repressivo. (ALVES, op cit, p. 193)


            Logo, consideramos que a influência do exército sobre a ação policial, no que tange à militarização e, por conseguinte, à conduta bélica no trato de assuntos de segurança pública, não foi o único fator que levou contribuiu para posturas arbitrárias e violentas de policiais militares em sua atuação cotidiana. Penso que este exercício de poder pelas categorias já citadas, na defesa de seus interesses e buscando um maior controle sobre os demais segmentos da sociedade, contribuíram sobremaneira para essa violência, partindo do princípio que a polícia – além do direito – é o instrumento de repressão mais concreto e direto que os detentores do poder (econômico, social, cutural) possuem. Neste sentido, abusa-se do instituto do “exercício legal da força” próprio do Estado e empregado pela polícia, para a preservação da ordem. Entendo que o fato de haver passado cerca de 20 anos do fim do regime de força estabelecido no país e as polícias ainda continuarem cometendo atos de violência – muitas vezes, piores do que aqueles cometidos durante a ditadura –, reforça essas reflexões.
            A Constituição de 1967, em seu artigo 13, parágrafo 4º, reiterava a missão  das Polícias Militares como “instituídas para a manutenção da ordem e segurança interna (grifo meu) nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal” (BRASIL, 2006, s.p.). Para Silva:

As expressões “segurança interna” e “manutenção da ordem” eram interpretadas pelo Estado-Maior do Exército como estando numa relação de intensidade. Inicialmente seriam empregadas as forças estaduais. Incapazes ou insuficientes essas, as forças federais seriam empregadas para reforçá-las ou substituí-las. A expressão “manutenção da ordem” era, assim, tomada em seu sentido estrito, ou seja, relacionada a ações de controle em manifestações públicas e para as ações de choque nos casos de distúrbios civis. As funções policiais típicas eram desenvolvidas até 30 de dezembro de 1969 (Dec.-Lei nº 1.072) pelas demais organizações policiais então existentes nos Estados: polícias civis, guardas civis, guardas de vigilância, polícias de trânsito etc. [...] As Polícias Militares eram marcadamente aquarteladas, e acentuadamente ociosas. O texto da Constituição de 1946, pois, não deixava dúvidas quanto à prioridade no emprego da PM: a segurança interna.(SILVA, 1990, p. 184)


Ainda que a União já se reservasse o direito de legislar sobre “organização, instrução, justiça e garantias das forças policiais dos Estados e condições gerais da sua utilização em caso de mobilização ou de guerra, como aponta o art. 5º, XIX, letra l da Constituição Federal de 1934, na Constituição de 1967, em seu artigo 8º, o texto praticamente repete-se. Em 13 de março daquele ano, o Decreto-Lei nº 317, que ficou conhecido popularmente como “Lei Orgânica da Polícia”, reorganizou as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares e, através de que em seu artigo 20, criou a Inspetoria Geral das Polícias Militares, efetivou, na prática, esse controle. Com isso, os governadores dos Estados não detinham autonomia de seus atos sobre as Polícias Militares de seus Estados, sem que para isso gozassem do aval do Estado-Maior do Exército, por maio da IGPM. Isso levou as Forças Públicas a militarizarem-se cada vez mais em sua cultura interna e subordinou, efetivamente, seus órgãos de inteligência aos órgãos de inteligência do Exército, focando de forma muito mais intensa os problemas de segurança interna, em detrimento das questões de segurança pública. Voltadas ao cumprimento da Lei de Segurança Nacional e à preocupação do “combate ao inimigo interno”, as Polícias Militares viram-se destituídas de sua identidade policial, que busca controlar a criminalidade e luta para minimizar os índices de violência, com enfoque privilegiado à prevenção, à negociação e à administração de conflitos, em lugar da repressão. Soares, faz relevante consideração sobre essa ligação das Polícias Militares com o Exército e sua indefinição identitária:

[...] há a dependência das PMs ao Exército, superpondo-se a seus vínculos com os governos estaduais, o que constitui uma ameaça permanente ao princípio federativo e representa um risco tácito de crise institucional.  Instadas a organizar-se à imagem e semelhança do Exército, sendo, entretanto, instituições destinadas a cumprir papel radicalmente diferente, as PMs acabam produzindo-se como entidades híbridas, pequenos exércitos em desvio de função.  É preciso libertá-las dessa dependência para que -mesmo preservando aspectos organizacionais, rituais e disciplinares de tipo militar- tenham a oportunidade de amadurecer como polícias, voltadas para a defesa dos cidadãos, das leis e dos direitos, através do uso comedido da força. (SOARES, 2004, p. 3)

A conseqüência maior residiu – e reside – no afastamento da polícia dos segmentos mais populares, enquanto no desempenho de sua missão primordial de preservadora da ordem, caracterizando-se muito mais como força de repressão do que, como visto, elemento de prevenção e controle. Volto, assim, a chamar a atenção para um tipo de comportamento que caracteriza a força pública como “braço armado das elites” em lugar de fomentar a isonomia, a legalidade e o respeito à cidadania em todos os seus aspectos.
Com a promulgação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, “estavam lançadas as bases para todo o tipo de arbitrariedade e uso da força bruta”, como propõe Sulocki (2007, p. 100), que prossegue afirmando:

É o Estado Polícia, em toda sua realidade crua, que se levanta. Nesse contexto, as Polícias estaduais, comandadas pelas Forças Armadas e instruídas pela doutrina da Escola Superior de Guerra, Doutrina da Segurança Nacional, foram valiosos instrumentos do regime militar. (ibiden)
             

            Huggins et al (2006) registram que após o advento do AI-5, a repressão do governo militar aumentou progressivamente, gerando milhares de novas prisões de suspeitos de subversão. Para fomentar essa repressão de forma mais eficiente, foram criados nos Estados esquadrões de operação conjunta, integrados por policiais militares e civis, a exemplo do Grupo de Operações Especiais (GOE), criado no Rio de Janeiro, entre outras unidades. Segundo Huggins:

A guerra dos militares contra a subversão não estabelecia limites à polícia, cuja violência legitimava-se ideologicamente em qualquer caso por uma difusa doutrina de segurança nacional que legalizava a violência contra segmentos cada vez mais amplos da população brasileira[...] A ideologia da “segurança nacional” [...] via o Brasil como se estivesse travando um tipo especial de guerra contra a subversão interna – ‘uma guerra sem uniformes, localizada nas ruas, onde o inimigo misturava-se à população em geral, [onde] a polícia não consegue distinguir os terroristas de bons cidadãos”[...] a ideologia da segurança nacional era agressivamente promovida nas academias de polícia e formação militar. (HUGGINS et AL, 2006, passim)


            As Polícias Militares das regiões Norte e Nordeste, as quais sempre viveram em dificuldades, a exemplo de seus Estados, perceberam o momento político “favorável”, através da aproximação com o Exército e da atenção que desfrutavam do governo federal – até pela necessidade de controle sobre áreas onde pudessem eclodir focos de rebelião e guerrilha, como o Araguaia, no sul do Pará. Assim, como coloca Silva:

[...] foi reforçada a militarização da Polícia com ênfase nos valores sempre em defesa da Instituição: “Brasil Acima de Tudo”, “Com o sacrifício da Própria Vida”, “Polícia Militar Guerreira” , “Hierarquia e Disciplina”, “Ordem Unida”, “Regulamento de Continência e Sinais de Respeito”, “Sempre Venceremos”, “Cumprimento de Ordem Superior” e tantos outros. O culto aos valores policiais, embora lembrados, jamais foram assimilados como verdadeiros para o crescimento do homem e da Corporação: “Proteger o cidadão”, “Servir”, “Não Maltratar Presos”, “Tratar a Todos Iguais” [sic], “Não usar Violência”, “Ser CortÊS”, “Ser Respeitado e Não Temido”, “Prisão somente em flagrante”. (SILVA, 1998, p. 30)


            Embora a Emenda Constitucional  Nº 1, de de 17 de outubro de 1969, em seu artigo 13, parágrafo 4º, houvesse suprimido do texto a expressão “segurança interna”, seu teor e o Decreto-Lei nº 667/69, que reestruturou as Polícias Militares, consolidaram sua condição como “forças auxiliares reservas do Exército” e contribuíram para manter a característica de emprego da força policial-militar como essencialmente de segurança do Estado.
            Por outro lado, o fato das polícias estaduais estarem, à época, quase que inteiramente voltadas para a questão da segurança interna, permitiu, especialmente nos centros urbanos mais desenvolvidos, um considerável crescimento da criminalidade comum, acrescida ainda, pela criminalidade de cunho ideológico – como, por exemplo, os assaltos a unidades bancárias por grupos na clandestinidade, visando o financiamento da luta armada no país. Como a violência institucionalizou-se e, assim, passou a constituir uma política de governo, foi natural o surgimento dos esquadrões da morte “informais”, no contexto das forças policiais.
Considerando que a década de 1970 foi, provavelmente, a de maior intensidade em termos de torturas e mortes extra-oficiais motivadas pela repressão política, estas práticas, que eram comuns dentro das unidades policiais, não tardaram em servir como forma de “solucionar” os problemas de segurança pública. Logo, grupos de policiais, civis e militares, começaram a estabelecer o assassinato premeditado como forma de controle social.
            Não estamos com isso afirmando que o regime militar criou os esquadrões da morte, entretanto, fatores como a formulação da política de segurança nacional e a forma como foi inserida no contexto das instituições policiais, além da ausência de preocupação com uma política efetiva de segurança pública e de um aprimoramento judicial para as questões da criminalidade comum, colaboraram sobremaneira para que a violência cometida por policiais, fugisse ao controle e se exacerbasse, alastrando-se por outras regiões do país. Este tipo de recurso, perdurou através do tempo, resistindo mesmo ao fim da ditadura em 1984, e, ainda hoje, perdura nas instituições policiais, mesmo estando a sociedade brasileira em pleno regime democrático.
            O processo de abertura iniciou-se efetivamente no ano de 1978, materializando-se com a Constituição de 1988. A Carta, como vimos,  dispensa novo tratamento à Segurança Pública, diferenciado dos demais períodos históricos a contar do Império, dedicando todo um capítulo para tratar acerca do assunto. Em seu artigo 144, a Carta de 1988 apresenta Segurança Pública como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos” e já em seu artigo 6º, a segurança é relacionada como um direito social. Com isto, procurou-se formatar um novo modelo de Segurança Pública, fundado segundo os preceitos de isonomia, legalidade, cidadania, respeito aos direitos fundamentais do homem e à dignidade humana, o que está implícito no teor dos artigos 1º, 3º e, em especial, 5º da Constituição.
Ocorreram notáveis avanços no que diz respeito à legislação federal, instrumentalizando instituições e, principalmente, o cidadão comum, contra o arbítrio e a violência ilegítima praticada por órgãos oficiais no desempenho de suas funções. Dentre outras leis e medidas adotadas pelo governo federal, encontram-se, além da Constituição de 1988, a Lei Nº 8069, de 13/07/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente; a Lei Nº 8.072, de 25/07/1990 (Lei dos Crimes Hediondos); a Lei Nº 8.078, de 11/09/1990 (Código de Defesa do Consumidor); a Lei Nº 9.099, de 26/09/1995 (Juizados Especiais Cíveis e Criminais); o lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos em 1996; a Lei Nº 9.455, de 07/04/1997 (Lei de Tortura); o lançamento, em 1998, do livreto “Construindo a Democracia Racial” que traz um relato sobre a constituição e as atividades do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra; o lançamento do Plano Nacional Antiviolência ou de Segurança Pública, em 20/06/2000;  a Lei Nº 10.406, de 10/01/2002 (Novo Código Civil); a Lei Nº 10.741, de 01/10/2003 (Estatuto do Idoso); em 2003, o lançamento do Projeto Segurança Pública para o Brasil, em substituição ao Plano Nacional Antiviolência, entre outras medidas posteriores.
Apesar desses avanços, o regime militar deixou como herança um sistema policial militarizado, que a Constituição Federal de 1988 não conseguir abolir, ao manter, em seu artigo 144, as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares como forças auxiliares e reserva do Exército, bem como, em seu artigo 42, classificar os membros dessas instituições como “militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”, redação dada pela Emenda nº 18, de 5 de fevereiro de 1998. Vale esclarecer que estamos nos referindo à militarização como “processo de adoção e emprego de modelos, métodos, conceitos, doutrina, procedimentos e pessoal militares em atividade de natureza policial, dando assim uma feição militar às questões de segurança pública” (CERQUEIRA, 1997, s.p.).
Como militares, a tendência é a adoção de um modelo operacional voltado para a guerra ou, no mínimo, para a segurança interna, onde o criminoso comum passaria a assumir o papel do inimigo que deve ser eliminado. Considerando que a polícia, desde suas raízes históricas mais longínquas no Brasil colonial, como visto, sempre manteve uma postura de defesa aos interesses daqueles que detêm o poder (não político, essencialmente, mas econômico, cultural e simbólico), fica fácil entender que o integrante das categorias menos favorecidas – principalmente, jovens – seja confundido com este inimigo de outrora, com o membro das chamadas “classes perigosas” do início do século ou com o comunista do período ditatorial. Hoje, muda-se apenas o nome: em lugar de comunista e subversivo, passou a chamar-se “traficante” ou “vagabundo”. Ao que parece, de forma similar ao que ocorreu quando foram instituídos os IPMs, através do AI-1, basta que uma leve suspeita, acusação ou simplesmente o preconceito para que alguém seja nomeado de vagabundo, traficante ou, no mínimo de viciado, para ser alvo de sumaríssimo julgamento por parte de policiais e daí, ser vítima de uma “pena”, na forma de castigo físico ou moral, estabelecido segundo um código próprio do policial, fundado em sua leitura da sociedade, pela lente da cultura institucional. O livro “Elite da Tropa” (SOARES et al, 2006), ainda que os relatos contidos na obra, segundo os próprios autores, “são ficcionais, no sentido de que todos os cenários, fatos e personagens foram alterados, recombinados e tiveram seus nomes trocados” (idem, p. 11), contém dois depoimentos que reproduzem essa visão, presente nas instituições de segurança pública. O primeiro, relativo à tortura e à morte dos chamados “vagabundos”, como se vê a seguir.

O assunto é violência. Quer dizer, a violência que a gente comete. Alguns chamam tortura. Eu não gosto da palavra, porque ela carrega uma conotação diabólica. Acho que há casos e casos, e que nem toda tortura é tortura, na acepção mais comum do conceito [...] O que quero dizer é que não me envergonho de não me envergonhar de ter dado muita porrada em vagabundo. Primeiro, porque só bati em vagabundo, só matei vagabundo. Isso eu posso afirmar com toda certeza. Sinto minha alma limpa e tenho a consciência leve, porque só executei bandido. E, para mim, bandido é bandido, seja ele moleque ou homem feito. Vagabundo é vagabundo (grifos meus). (idem, p. 35-36)

Percebe-se que o depoimento carrega a distorção do conceito de tortura, na afirmação de que esta, descaracteriza-se como tal, se aplicada àquele qualificado como “vagabundo” ou “bandido”, ou seja, ela deixa de ter uma conotação criminosa, hedionda e cruel, através de uma espécie de desumanização, ou melhor, pela “infamização” – se é que podemos empregar esse termo – de quem foi chamado bandido. Assim, se a tortura é uma agressão contra os direitos humanos, quando se nomina a vítima de “bandido”, desumaniza-se o homem, torna-o infame, e daí, o suplício a ele aplicado descaracteriza-se  enquanto agressão, passando sua prática a ser entendida como um tipo de controle social – que pode chegar à morte –, como forma de expurgo. Isso é similar ao simbolismo encontrado no ritual do suplício, conforme abordado por Foucault, em sua obra “Vigiar e Punir. Segundo esclarece Foucault:
O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. [...] O suplício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências. Em relação à vítima, ele deve ser marcante; destina-se, ou pela cicatriz que deixa no corpo, ou pela ostentação de que se acompanha, a tornar infame aquele que é sua vítima [...] (FOUCAULT, 1999, p. 31)

Por outro lado, este tipo de visão, serve como auto-justificativa para o cometimento de assassinatos, ou seja, elimina os pudores morais de matar alguém, traçando uma linha de separação entre o crime comum de homicídio, a morte por um ato de auto-afirmação diante do grupo e de evidente masculinidade e, ainda, de um ato que faz parte da necessária “limpeza” da sociedade, da qual a polícia está encarregada.
Na realidade, defendemos que os termos “bandido” e “vagabundo” são elementos semânticos que tem o propósito de salvaguardar o policial de um processo de desumanização, diante de si e das outras pessoas, proporcionando-lhe, como foi dito, uma justificativa para o ato de torturar ou matar alguém, uma forma de “excludente de criminalidade”, acreditando, assim, estar a serviço da sociedade. Ao mesmo tempo, as palavras ocultam em si, toda a força das relações de poder dentro do espaço social, com seu conjunto de representações, estabelecendo marcas ou ainda, divisões entre bons e maus, superiores e inferiores, “homens de bem” e “bandidos”. De certa forma, os termos supramencionados assemelham-se às faixas que os judeus conduziam atadas ao braço, por imposição do regime nazi-fascista.
O segundo depoimento, dá conta desse preconceito vigente na ação policial, enquanto resultado de uma imposição das categorias com maior capital social, político e econômico[3], e como expressou Monet, “a polícia está longe de ser esse instrumento inerte nas mãos de governantes que agem eles mesmos permanentemente sob o controle dos cidadãos ou de seus representantes” (MONET, 2001, p. 16). O depoimento ao qual fazemos alusão neste parágrafo, registra:

Não vamos ser cínicos e fingir que vivemos no paraíso da democracia racial. E não estou falando só porque sou negro e vítima do preconceito, não. Milhões de vezes me pego discriminando também. Na hora de mandar descer do ônibus, você acha que escolho o mauricinho louro de olhos azuis, vestidinho para a aula de inglês, ou o negrinho de bermuda e sandália? E não venha me culpar. Adoto o mesmo critério que rege o medo da classe média. É isso mesmo, a seleção policial segue o padrão do medo, instalado na ideologia dominante, que se difunde na mídia (grifo meu). (SOARES et al, op cit, p. 133-134)

Ressalto nesta última citação, o fato afirmado por um policial de reproduzir em sua atitude – sem importar que seja uma manifestação de preconceito racial – o que ele chama de “medo da classe média”. Chamo atenção, muito mais para o aspecto da reprodução de um conceito ou mesmo de uma representação, onde o “negrinho de bermuda e sandália” é associado, no mínimo, à possibilidade de ali estar um bandido.  
            Assim, diante da construção cultural de uma polícia que foi forjada para exercer um papel de instrumento de defesa do Estado, conforme exposto, acreditamos ser natural que essa mesma polícia reproduza, de forma perversa e exacerbada, em suas ações, toda a carga de autoritarismo e de força próprias da discricionariedade estatal, empregando a violência e impondo-se pela força, mesmo que importe em violações dos direitos humanos e dos cidadãos.
            Atento às considerações de Sousa Filho (2001) relativas à violência da sociedade escravagista no Brasil, “isto é, uma sociedade com senhores e escravizados, [onde] (inserção minha) a lei existia para respaldar a crueldade dos senhores no trato com seus escravos” (idem, p. 104). Mas a prática dos castigos físicos não se restringia às relações entre senhores e escravos, todavia, a escola os empregava largamente, como parte fundamental da pedagogia tradicional. Ajoelhar sobre caroços de milho ou levar golpes de “palmatória” eram dois dos “corretivos” mais comuns empregados nas escolas de outrora, onde o professor encarnava a autoridade máxima em sala, arbitrário e revestido do poder para aplicar tais penas, dentro do contexto de uma educação alienada, sem espaços para um posicionamento mais crítico. Nas Forças Armadas, em especial na Marinha, pode-se verificar que até o ano de 1910, quando ocorreu a Revolta da Chibata, os marujos que cometessem transgressões eram punidos com chibatadas e, mesmo hoje, sob a alegação da necessidade de disciplina e do aprimoramento físico, trotes humilhantes e exercícios extenuantes, são formas de “educar” aquele que não cumpriu uma tarefa ou que feriu normas de um regulamento.
            Entretanto, o que evidencio é o fato de que as relações entre senhores e escravos, na escola, nas forças militares e outras onde há a presença de uma norma, seja de forma positiva ou tácita, há uma relação pedagógica, onde se exprimem e se transmitem as relações de poder existentes no contexto social, ainda que, às vezes, de forma coercitiva. Diante desse fato, torna-se possível compreender que o policial é formado dentro de parâmetros curriculares diversos daqueles empregados durante o regime militar, todavia, suas atitudes são forjadas no cerne de um habitus, que o prepara para ser “um aplicador da violência que seja adequado ao jogo de forças típico da sociedade brasileira” (LUDWIG, 1998, p. 8).
Diante dessas considerações, entendo que na produção da violência cometida pelo soldado da Polícia Militar há a reprodução de um modelo social onde a aplicação de castigos físicos – ou de formas simbólicas de violência – era plenamente aceitável, como forma de punição, correção ou prevenção a condutas consideradas como desobediência, desrespeito e ilegais. O que interessa a partir de então, para efeito desta pesquisa, é a compreensão acerca de como o soldado da PMRN se percebe, enquanto um sujeito desse processo e que representações sociais, de caráter mais hegemônico, constrói relativamente à violência que pratica. Destarte, no terceiro capítulo passo á apresentação da metodologia empregada na pesquisa, bem como, à apresentação e análise dos dados empíricos coletados. 

2.2 Direitos Humanos no contexto da Corporação Policial Militar

Ao examinarmos os princípios que norteiam o PNSP, encontramos que as polícias destinam-se a servir os cidadãos, devendo proteger direitos e liberdades, bem como, responsabilizarem-se por inibir e reprimir suas violações. O mesmo documento evidencia que a ação da polícia deve ser acompanhada de ação social preventiva, onde ambas as ações são complementares entre si[4].
Entretanto, outro princípio assevera que os policiais são seres humanos, considera-os como trabalhadores e investe-lhes da condição de cidadãos, logo, portadores de direitos humanos.
A convivência com a Corporação PM permite observar que, não obstante as condições de humanos e cidadãos, atribuídas a seus integrantes, os estatutos reguladores de sua conduta são, em sua maioria, impróprios e inadequados, à realidade de uma sociedade brasileira que, como já vimos, a partir da década de 1980, iniciou um momento de transição. Essa transição levou a um processo de (re)elaboração de algumas representações, conceitos e signos, referentes à noção de segurança pública, buscando uma adequação ao novo cenário social brasileiro e suas expectativas.
Hoje, quando novas formulações sociais, econômicas e políticas vão sendo sedimentadas no país, bem como, diretrizes mais modernas são estabelecidos para as ações de segurança pública, há fortes indícios da permanência de conceitos atávicos no contexto da instituição PM, compromentendo o desempenho de seus integrantes. Nota-se, por exemplo, que a hierarquia e a disciplina, princípios organizacionais que deveriam funcionar, meramente, como elementos mantenedores de uma ordem interna, transformam-se em óbices à autonomização dos agentes de ponta.
            Retomando a proposição de Soares (2003) quanto à omissão histórica que alcançou as PMs no processo de democratização nacional, verificou-se uma cobrança generalizada no que diz respeito à humanização e ao preparo dos policiais, quanto ao tratamento e atitudes dispensados aos cidadãos durante sua jornada de trabalho. Essa cobrança gerou (e tem gerado) uma avalancha de acusações na mídia, denúncias e procedimentos administrativos nas Ouvidorias e Corregedorias de Polícia, uma série destas, infundadas.
            Ao que parece um “espírito revanchista” contra o arbítrio do passado, tem afetado consideráveis parcelas da sociedade, que, em muitos casos, esquecem que os policiais são, tembém, seres humanos, portadores de direitos e prerrogativas funcionais. Não que pretendamos justificar a ação truculenta de policiais violadores dos direitos humanos, colocando-os na condição de vítimas. Entretanto, é importante considerar dois aspectos fundamentais na produção desse comportamento. O primeiro, consiste na violência com que se defrontam nas ruas, cotidianamente. O estresse provocado pelo envolvimento em situações de risco, o turbilhão de emoções entremeadas em fatos, onde lhe é exigido auto-controle e  imparcialidade, o desgaste físico provocado por jornadas de trabalho desgastante, constituem fatores que, não raro, são desconsiderados no momento de julgar sua conduta e aplicar-lhe a punição do juízo público ou disciplinar. Vale registrar que esses elementos de fadiga física e psicológica, comprometem não só as relações de sociabilidade relativas ao seu desempenho profissional, todavia, aquelas que se referem ao convívio familiar, às amizades, ao próprio reconhecimento de si mesmo como cidadão e alguém que tem direitos inalienáveis, enquanto ser humano.
            Daí, não ser estranho que muitos integrantes das PMs afirmem que direitos humanos servem só para proteger bandidos. E este alheiamento, esta falta de vivência com o uso e gozo dos direitos que lhes são peculiares, tem levado à violação dos direitos alheios. Essa situação atinge de forma mais incisiva, as Praças, considerando que, dentro de suas respectivas competências e prerrogativas, cada nível hierárquico da Oficialidade PM, detém o poder disciplinar em suas mãos e, de certa forma, simboliza o poder dominante nas relações vigentes na sociedade civil. Segundo Muniz, referindo-se à situação existente na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ):

Os suboficiais e praças descrevem sua realidade profissional, quase em uníssono, como um “mundo de obrigações” refratário às conquistas cidadãs. A atmosfera constituída por este mundo disciplinar é carregada por um apetite suspeitoso e punitivo que se estende para além do universo profissional, invadindo as outras esferas de sociabilidade da vida dos policiais, inclusive a dos inativos. Atraso nas prestações do crediário, dívidas pendentes, indução à embriaguez, freqüência em eventos sociais, casas noturnas ou bares consideradosimpróprios por algum superior hierárquico fazem parte do repertório de situações que podem ser “enquadradas” como faltas que atentam contra o “decoro da classe” e o “pundonor policial militar”. Do mesmo modo, eventuais reclamações de problemas conjugais ou desentendimentos na vizinhança vividos por um policial militar podem ser interpretados como episódios incompatíveis com a “honra pessoal” dos integrantes da “família policial militar” (MUNIZ, 2007, p. 66)
            Nota-se uma ingerência que ultrapassa os muros do quartel e os limites do serviço, para adentrar esferas da vida pessoal dos policiais. E esse mau uso dos expedientes disciplinares, alia-se à formação castrense a que são submetidos os milicianos.
            Ainda que tenham ocorrido substanciais mudanças nas diretrizes e nas bases curriculares para a formação dos policiais, é notório que o viés militarizado da Corporação mantém forte influência sobre seus Centros de Formação. E, neste sentido, elementos como energia e seriedade, muitas vezes, tornam-se sinônimos de intolerância, rispidez e truculência, em nome de um pseudo “enrijecimento de caráter”. A cobrança exacerbada nos movimentos e atitudes militares, bem como, as punições físicas ou o corte de direitos, são impostos aos alunos com naturalidade, acreditando-se que essas atitudes irão gerar um espírito disciplinado e obediente, pronto a responder – como é dito em muitos centros de formação – “sim, senhor; não, senhor e quero morrer”. Aliás, esta é apenas uma das múltiplas expressões infelizes que se acham ecoando nas escolas policiais.
            Então, como exigir desse homem uma postura diferente, cidadã e voltada para os direitos humanos, se seus próprios direitos são usurpados durante o período de formação, se sua intimidade é violada depois de terminado o curso, se as punições e os privilégios são distribuídos de forma desigual?
            Como condenar o policial que busca refúgio sob a proteção de uma certa autoridade em segmento outro do poder público, desviado de sua função original, se essa foi a fórmula que se construiu – inclusive, pelos Oficiais – para alcançar melhores rendimentos e qualidade de vida?
            Não estamos apregoando o fim da disciplina ou do respeito à hieraquia. Contudo, entendemos que o policial militar como agente aplicador da lei, e que deve funcionar como elemento de proteção dos direitos humanos, só conseguirá exercer plenamente suas funções como tal, se, a partir de sua formação, contar com a devida proteção aos seus direitos fundamentais.


CONCLUSÃO

            O legado militar e a herança autoritária que coube historicamente à Polícia Militar, tem prejudicado um relacionamento mais próximo com os demais segmentos da sociedade. Além disso, a idéia de uma Corporação policial que está a serviço de uma elite, que é um mero instrumento de emprego da força característica do Estado, precisa ser mudada. Para muitas categorias, o PM é o elemento repressor, o protagonista do horror que aflige as classes mais populares.
            Entretanto, a atividade do policial-militar que está na linha de frente das operações policiais, reflete de forma nítida toda a carga de preconceitos que se esconde nas políticas públicas de segurança.
            É evidente que muitos policiais cometem abusos, arbitrariedades, ilicitudes e violações de direitos, todavia, cabe-nos perguntar: esta não seria apenas a “ponta do iceberg”? Será que o homem que pratica essas atitudes, o faz simplesmente pelo desejo de violar os direitos alheios ou não haveria um processo maior que o envolve com múltiplas variáveis, levando-o a transgredir?
            A relação direitos humanos-polícia é muito complexa para ser solucionada unicamente com algumas aulas durante a formação ou um curso esporádico nem sempre frequentado por quem precisa. É um problema de vivência, de princípios e de mentalidade, que somente uma profunda transformação no modelo e estrutura de nossas polícias poderia produzir resultados efetivos.
            É preciso entender que essa mudança ultrapassa os limites da Corporação policial e alcança outras dimensões onde se desenvolvem suas atividades. Isto representa dizer que, não basta exigir que o policial respeite o cidadão, é essencial que o policial seja também respeitado; não é suficiente dizer ao policial que ele não deve impor sofrimento, torturar, matar ou ferir àqueles que estão à margem da lei ou às populações menos favorecidas, é necessário que se observe e que se puna, aqueles que, sem arma na mão, impõem o sofrimento da fome, torturam pela desigualdade, matam pela falta de assistência e ferem pelo abandono essas mesmas populações.
            Não defendemos que os policiais violadores sejam tratados como vítimas e “coitadinhos”, passem impunes por seus atos cruéis e abusivos. Todavia, ressaltamos, que se lute por novas estruturas, onde os ideários dos direitos humanos encontrem campo fértil para germinar e crescer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1]  Segundo o Art. 6º da CF/88,  “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
[2] Percebe-se que a tríade liberdade, igualdade e fraternidade, expressa como fundamento filosófico que permeou as principais declarações de direitos da Idade Moderna (Declaração de Direitos da Virgínia de1796 e as Declarações de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e 1793), mantendo-se, ao longo do tempo, no âmago dos principais documentos de direitos humanos e culminando com Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, tem sua influência em nossa Carta Magna, não só no que se refere aos artigos 5º e 6º, todavia em outras de suas partes, como o art. 144.
[3] Para melhor esclarecimento, ver os estudos de Bourdieu sobre o poder simbólico e capital social nas seguintes obras:
BOURDIEU, Pierre. Esboço de um teoria da prática. Tradução das partes: “Le trois modes de connaissance” e “Structures, habitus et pratiques”. In: ORTIZ, Renato (org.) & FERNANDES, Florestan (Coord.). Pierre Bourdieu, São Paulo: Ática, 1994. p. 46-81.
______. Razões práticas: sobre a teoria da ação, Campinas, SP: Papirus, 1997.
______. Meditações pascalianas. Tradução Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001a.

[4] Isto confirma a importância de se ter uma visão sistêmica da segurança pública.