INTRODUÇÃO
A busca
pelo estabelecimento de um estado de paz social, pleno de relações harmônicas e
fraternais, que fomentem a qualidade de vida, o bem-estar dos indivíduos e, por
conseguinte, o desenvolvimento plural do país, tem sido uma constante nos
discursos de amplos segmentos de nossa sociedade.
Todavia, observa-se
que, nos últimos vinte anos, em várias partes do território nacional, tem
ocorrido o crescimento de fenômenos como a violência, a criminalidade e a
desigualdade social, resultantes, dentre outros fatores, de uma crise ética que
aflige, principalmente, categorias que detêm generosas cotas de poder
(político, cultural e simbólico) e de responsabilidade na gestão desse
espetacular complexo de raças, paisagens geográficas, econômicas e culturais,
chamado Brasil.
O uso
indevido e mesmo criminoso de prerrogativas funcionais e do poder econômico,
aliado à impunidade dos agentes da chamada “criminalidade dourada” e à ausência
ou fragilidade das políticas públicas voltadas aos segmentos sociais menos
favorecidos, têm provocado sérios comprometimentos no que tange à efetivação
dos direitos individuais e coletivos, previstos na Carta Magna de 1988,
particularmente, em seus artigos 5º e 6º.
Em razão destes fatos, cresce o descrédito dos poderes constituídos e de
diversas instituições públicas, o que se pode considerar uma ameaça ao Estado
Democrático de Direito, vez que abre espaços à ação de grupos comprometidos com
o narcotráfico e outras facções do crime organizado, à desobediência civil e ao
surgimento de movimentos outros que coloquem em risco, assoberbadamente, a
Ordem e a Tranqüilidade Pública.
Apesar de parecer um discurso alarmista e
apocalíptico, dissociado da realidade, torna-se notório que a maior amplitude e
visibilidade dos fenômenos anteriormente citados, têm provocado profundos e
sérios reflexos na vida cotidiana dos brasileiros, colocando em risco o uso e
gozo de direitos fundamentais inerentes à condição humana e de alguém que, sem
sofrer distinção de qualquer natureza, está sob a tutela da Constituição
Federal, onde estão consignados os princípios fundamentais da República e seus
objetivos fundamentais.
Dentro do
estudo dessas ameaças aos Direitos e Garantias Fundamentais das pessoas, uma
das temáticas mais candentes reside na ação das polícias estaduais,
instrumentos do Estado responsáveis pela aplicação da Lei. E a ressonância das
violações praticadas por esses agentes estatais, além de refletir a urgente
necessidade de mudanças nas estruturas dos órgãos policiais, mormente, em seus
aspectos ideológicos e administrativos, espelha a omissão com que se houve o
poder público, de forma mais específica, na formulação de um novo modelo de
polícia adequado à nova realidade brasileira, fundado no respeito aos direitos
humanos e à cidadania.
Ainda que o
Plano Nacional de Segurança Pública (PNPS), lançado em 2003, estabeleça
diretrizes para a construção de uma nova polícia e o Ministério da Justiça,
através da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), venha investindo
pesadamente em ações didático-pedagógicas voltadas ao estabelecimento de uma
política de reconhecimento e respeito aos direitos humanos, é evidente que as
mudanças ocorridas não conseguiram produzir resultados tão significativos nesta
área. Isto se torna perceptível, considerando o elenco de acontecimentos,
fartamente divulgados pela mídia, onde policiais protagonizaram (e
protagonizam) momentos de clara violação dos direitos fundamentais de
indivíduos que, em sua maioria, são negros, residentes em áreas pauperizadas e
que, muitas vezes, sequer apresentam ficha criminal ou envolvimento com atividades
criminosas.
Ainda que
as instituições policiais apresentem em sua defesa o argumento de que esses
atos são praticados por uma minoria de seus integrantes, não há como questionar
que tais práticas ferem diretamente os estatutos internacionais de direitos
humanos, em muitos dos quais o Brasil é signatário, entre eles o Código de
Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (1979).
Contudo, há uma pergunta que não quer calar: se o PNSP e a SENASP prevêem e
realizam investimentos na educação em Direitos Humanos, inclusive com o recente
lançamento do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, qual seria a
justificativa para a conduta truculenta e violadora de direitos, adotada pelos
policiais brasileiros?
Acreditamos
que a resposta para esta inquirição não reside em um único explicativo, mas num
conjunto de variáveis que afetam a conduta profissional dos policiais. O
propósito deste trabalho não consiste em esgotar a discussão sobre o assunto,
dada sua complexidade e abrangência multidisciplinar. Porém, estaremos nos
detendo na análise da aplicação dos direitos humanos, dentro do contexto da
Polícia Militar e, mais especificamente, no Estado do Rio Grande do Norte.
1 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A
promulgação da Constituição Federal de 1988 constituiu-se um marco na luta por
um país mais justo, igualitário e, sobretudo, onde os Direitos Humanos
Fundamentais fossem respeitados.
O país,
então recém saído de uma ditadura, ainda guardava em sua memória imagens,
testemunhos e lembranças dos horrores praticados não só pelas forças oficiais
mas, também, por muitos que compunham grupos políticos de oposição ao regime,
em sua “luta pela liberdade”. E, neste caso, é interessante ressaltar que, embora
as cobranças e acusações quanto à prática de abusos e agressões contra os
direitos de muitos cidadãos recaiam quase sempre sobre as Forças Armadas e as
polícias estaduais, essas violações aconteceram de ambos os lados da história.
O que se presenciava, na verdade, era um confronto político-ideológico no qual,
ambos os lados, tentavam justificar seus atos violentos e abusivos pelos
argumentos da “Defesa Nacional” e da “luta pela Democracia”.
Após
um período de vinte e um anos de regime militar ditatorial, vigente desde 1964,
principiou-se no país o processo de volta à democracia, o que requeria “um novo
código que refizesse o pacto político-social” (PIOVESAN, 1996, p. 55). Esse
estatuto foi a Carta de 1988 que, segundo Piovesan:
[...] institucionaliza a
instauração de um regime político democrático no Brasil [e] (inserção nossa) introduz
também indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos
fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A
partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando=se a
Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os
direitos humanos jamais adotado no Brasil. (ibid)
Logo,
compreende-se que a Constituição de 1988 passou a constituir um divisor de
águas na política brasileira de direitos humanos, sugerindo assim, uma mudança
de postura tanto ao reconhecimento de obrigações internacional, quanto à
revisão generalizada de outros estatutos legais, de sistemas e instituições,
permitindo desta feita, que fosse assegurado o exercício dos direitos sociais e
individuais por todos. Mais ainda, o art. 1º do texto constitucional elenca os
princípios sobre o qual está fundamentado o Estado Democrático de Direito
vigente no Brasil, onde ressaltamos os incisos II e III, os quais citam a
cidadania e a dignidade da pessoa humana como dois desses pilares.
Neste
trabalho, consideramos a cidadania como a condição atribuída ao indivíduo que
lhe permite participar da vida social, econômica, cultural e política do país,
expressa, fundamentalmente, no uso e gozo de seus direitos sociais[1]
e políticos (arts. 14 – 16). Consideramos a dignidade como condição inerente a
todo ser humano e que diz respeito ao “mínimo existencial”, isto é, ao
estabelecimento de condições mínimas que permitam a sobrevivência humana. Mas,
é preciso sublinhar que a dignidade ultrapassa elementos meramente ligados à
sobrevivência do ser humano. Como afirma Dallari:
Para os seres
humanos não pode haver coisa mais valiosa do que a pessoa humana. Essa pessoa,
por suas características naturais, pode ser dotada de inteligência, consciência
e vontade, por ser mais do que uma simples porção de matéria, tem uma dignidade
que a coloca acima de todas as coisas da natureza. Mesmo as teorias chamadas
materialistas, que não querem aceitar a espiritualidade da pessoa humana,
sempre foram forçadas a reconhecer que existe em todos os seres humanos uma
parte não-material. Existe uma dignidade inerente à condição humana, e a preservação
dessa dignidade faz parte dos direitos humanos. (DALLARI, 2000, s.p.)
Assim,
pode-se entender que estes dois princípios fundamentais constituem paradigmas
fortes no estabelecimento de toda e qualquer ação estatal, o que inclui as
ações policiais. Basta observar que contém em si, a expressão dos artigos que
servem de “norte” na composição de uma segurança pública mais eficiente, eficaz
e efetiva. E esta assertiva repousa em uma visão sistêmica, ou seja, as
questões relativas à Segurança Pública não se prendem unicamente à atuação da
polícia, entretanto,
encampam uma diversidade de atores, dentro de uma complexa rede de
relacionamentos, onde o exercício dos direitos fundamentais e sociais deve ser
efetivado.
Logo, quando tomamos o texto
constitucional em seu art. 144 e encontramos a segurança pública como “dever do
Estado, direito e responsabilidade de todos”, podemos compreender que cabe ao
Estado, através dos órgãos que integram o Sistema de Justiça Criminal e o (Sub)
Sistema de Segurança Pública, a obrigação de garantir, por todos os meios
disponíveis, a preservação da vida dos indivíduos, sua liberdade, a igualdade
entre eles, sua segurança e sua propriedade, bem como, fomentar-lhes as
condições para seu desenvolvimento como membros da sociedade, através da
garantia de seus direitos sociais.
Por outro lado, o mesmo artigo imputa
a todos, os direitos aos quais nos
referimos. Fizemos questão de grifar o vocábulo todos, dado o caráter de
universalidade que alcança esses mesmos direitos, e que assegura o exercício do
princípio da isonomia. Convém frisar que há, ainda, o art. 144 refere-se a uma
responsabilidade coletiva, no escopo garantir a permanência dos laços de
fraternidade social, a liberdade consciente e responsável, bem como, a
igualdade de direitos[2], o
que forma o tríplice supedâneo para a prática da Democracia e o pleno
desenvolvimento. Portanto, é inegável que a nova idéia de segurança pública
preconizada na Constituição Federal, passou a exigir uma polícia diferente, que
atue com a visão humanitária, aliada à técnica; o emprego de força regulado
pelas normas internacionais de direitos humanos e respeitando, de forma
permanente, a dignidade humana e a cidadania.
Entendemos que apesar de alguma
evolução, as práticas policiais ainda não atendem na totalidade essas
características de uma polícia alicerçada nos princípios democráticos e
humanitários. Mas, será que esse estado de coisas constitui-se, unicamente, por
culpa dos policiais que são homens violentos, grosseiros e maus?
Será que estes mesmos policiais têm sido alvo de respeito aos
seus direitos fundamentais e a sua dignidade? Por que é tão difícil a
construção de uma nova polícia?
Estas são questões que brotam ao estudarmos a (difícil)
relação entre a polícia brasileira e os direitos humanos fundamentais, na nova
realidade sócio-política do país.
2 OS DIREITOS HUMANOS
NA POLÍCIA
A recorrência de situações
que expressam a violência
policial e violações dos direitos fundamentais dos indivíduos aponta para um fato concreto e
contemporâneo: há uma exigência
cada vez
maior no tocante
a uma segurança pública
compatível com
o Estado Democrático de Direito, enquanto
os agentes policiais
parecem não acompanhar
este movimento.
Soares (2003)
adverte que em
meio a todo
o processo de reforma institucional ocorrido na sociedade brasileira,
a polícia foi esquecida nas sombras do passado autoritário,
fato que
classificou como uma “omissão
histórica” e que
trouxe a reboque, um
vasto acervo
de hábitos que
remontam aos períodos de exceção, entre eles, a violência
arbitrária e a tortura.
Esse cenário tornou-se o nascedouro
de incontáveis trabalhos nos quais, pesquisadores de diversas áreas do
conhecimento tentaram estabelecer as raízes desse problema. Obviamente, que não
nos lançaremos a essa tarefa, pois seria uma insanidade tentar esmiuçar
questões de tamanha complexidade dentro dos limites desse texto. Porém,
buscaremos refletir, conforme proposto na introdução, sobre dois pontos que
julgamos básicos na análise das violações aos direitos humanos praticadas por
integrantes das instituições policiais brasileiras. O primeiro deles trata da
polícia enquanto órgão de defesa do Estado e não do cidadão, enquanto o segundo
ponto, aborda a questão do respeito aos direitos humanos dos policiais militares.
2.1 A
POLÍCIA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA DO ESTADO
A evolução histórica do segmento
fardado da segurança pública, principia no Brasil Colônia, com a criação das
Companhias de Ordenanças conforme a Carta Régia de 1559 que, no dizer de Silva,
“mantinham a ordem pública nas cidades, vilas e paróquias. Disciplinadas e
obedientes ao poder público local (grifo do autor), constituíam fatores
fundamentais da ordem interna e defesa
da pátria nascente” (grifo
nosso) (SILVA, 1998, p. 6). Seguiram-se às Companhias de Ordenanças, as Tropas
Pagas (1709) que originaram, posteriormente, as Companhias de Dragões (1719) e,
nas Capitanias mais desenvolvidas, surgiram os Regimentos Regulares de
Cavalaria, todas elas, forças com características militares, ainda que tivessem
em suas ações um componente de ordem civil, como esclarece Silva:
Ressalte-se
que, já na sua gênese, as “Forças Públicas” estruturavam-se como organização
militar e tinham uma dupla função:
Civil: era a função policial
rotineira de prevenir e reprimir o crime;
Militar: era a função
esporádica de enfrentamento das insurreições e defesa da Colônia. (grifo do
autor) (SILVA, op cit, p. 7)
Segundo a maioria dos historiadores
da segurança pública no Brasil, estas foram as instituições que compuseram as
raízes da Polícia Militar.
Esta
realidade de militarização de nossas forças públicas de segurança, perdurou em
todos os períodos da história brasileira, representando o emprego das
Corporações policiais muito mais na defesa do Estado e de uma Ordem, segundo o
entendimento das elites, conforme seus interesses, do que na preservação da
Ordem, segundo os interesses coletivos do povo, atentando para os direitos
fundamentais do cidadão.
Compreendendo
que um estudo dessa condição redundaria em alongar-nos demasiadamente no
assunto, extrapolando os propósitos deste trabalho, deteremo-nos na análise do
período histórico posterior ao Golpe de 1964, mais próximo à realidade
contemporânea.
Em 31 de março de 1964, é
deflagrado um golpe militar no país que depôs o então Presidente João Goulart,
após intenso período agitação política. Instaura-se assim, no Brasil, um regime
ditatorial que iria durar cerca de 20 anos.
Os anos do
governo de exceção ocorridos após o golpe militar de 1964, vieram apenas
confirmar e fortalecer a tendência militarizante existente no sistema policial
brasileiro desde o seu nascedouro. A implantação do regime contou com forte
presença das forças policiais dos Estados, conforme registrou Borges Filho ao
afirmar que:
Tanto para o dispositivo militar de João
Goulart, que contava com a lealdade das policiais estaduais de governadores
simpáticos ao governo federal, quanto para o esquema golpista, as PPMM eram
peças fundamentais no quadro conspiratório.(BORGES FILHO, 1994, p. 67)
O autor
prossegue apresentando fatores que asseveravam à Polícia Militar este caráter
imprescindível ao sucesso pleno do movimento revolucionário:
Alguns fatores, tidos como materiais, colocam as PPMM como forças mais
aptas para a ação militar urbana: a) o contingente das policias estaduais é na
maioria dos Estados, superior ao das FFAA na região; b) o armamento policial,
mais leve, é o mais adequado para controlar e reprimir a “perturbação da
ordem”; c) o policial militar, tendo em vista a sua ação permanente no
policiamento ostensivo, está mais bem preparado para controlar e combater as
forças de oposição; d) por deterem uma menor dose de politização, os policiais
militares estão mais isentos do contágio político-ideológico e, portanto, mais
acessíveis às ordens de comando numa operação de grave perturbação da ordem.(idem)
Com a
deposição do Presidente João Goulart, iniciou-se um período de intensa
perseguição política com a instauração da violência, do arbítrio e da tortura
como “instrumentos de expurgo social” pelo novo regime. Muitos desses abusos,
eram “legalizados” através dos Atos Institucionais. Como observa Huggins:
Os militares brasileiros consolidaram seu poder mediante uma série de
Atos Institucionais (Ais) draconianos, a “Constituição” de facto do novo regime militar [...] O AI-1 estabeleceu certas
consições em que os direitos políticos individuais poderiam ser suprimidos e
aboliu outros direitos civis de extensa lista de cidadãos, particularmente
aqueles que representavam obstáculo à vasta campanha de “limpeza” recém
iniciada pelo Estado [...] A limpeza foi levada a cabo por todo o país mediante
varredura das ruas pelas polícias e Forças Armadas, incluindo amplas buscas,
capturas e prisões em massa. (HUGGINS, 1998, passim)
Neste
período, através do Ato Institucional nº 1 (AI-1), foram instituídos os
Inquéritos Policiais Militares como previsto em seus artigos 7º e 8º,
procedimentos que constituíram fortes armas para a prática de arbítrio, como se
percebe nas considerações de Alves:
Os IPMs tornaram-se uma forte de poder de facto
para o grupo de coronéis designados para chefiar ou coordenar as investigações.
Configuravam o primeiro núcleo de um Aparato Repressivo em germinação e o
início de um grupo de pressão de oficiais de linha-dura no interior do Estado
de Segurança Nacional [...] Os IPMs também passaram a servir a interesses
políticos locais. Certos políticos da UDN que freqüentemente perdiam eleições
passaram a valer-se do recuso de acusar seus adversários políticos de
atividades “subversivas”, envolvendo-os em algum IPM para eliminar a
concorrência indesejada [...] Como tais acusações não precisavam submeter-se –
especialmente no caso de uma cassação – ao teste da comprovação em tribunal e à
decisão de um júri neutro, este tipo de luta local pelo poder tornou-se
freqüente. Carentes de qualquer fundamentação jurídica formal, os IPMs não se
submetiam a regras fixas de comprovação. Os próprios coronéis freqüentemente
estabeleciam os preceitos legais sobre os quais deviam basear suas decisões. O
testemunho da “opinião pública” era suficiente, em certos casos, para provar as
atividades subversivas ou revolucionárias que justificavam punição: “Quando o
fato é público e notório, este independe de provas, conforme preceito geral do
direito, que aboliu o sistema de certeza legal, libertando o julgador de
preconceitos textuais”. (ALVES, 2005, p. 69-70)
Estes elementos históricos evidenciam uma questão
que demanda ser refletida no estudo ora desenvolvido: como esperar um
comportamento isento, desprovido das paixões de momento e focado na legalidade
dentro da ação policial militar, considerando toda a herança de arbítrio da
qual foram depositários durante o regime ditatorial? Percebe-se com nitidez que
a prática dos IPMs, fortalecia as categorias dominantes da sociedade no
exercício do poder local, isto é, pelas oligarquias representadas por
empresários, grandes produtores rurais (latifundiários) e facções políticas
mais conservadoras, exatamente aquelas que deram a sustentação no lado civil do
movimento golpista. O cenário, portanto, difere pouco daquele apresentado no
período da República Velha, a fase dos coronéis. Assim, o sistema, ampliava sua
rede de controle e repressão sobre os segmentos mais progressistas da
sociedade, permitindo estabelecer elementos de poder local que fossem
favoráveis ao regime e, ao mesmo tempo, dominando as instâncias de segurança
pública de caráter regional. Esse controle e repressão dava-se por intermédio
de um conjunto de medidas, que envolviam o poder local. Como observa Alves:
A campanha de repressão consistia não só na institucionalização da
tortura, como na técnica de interrogatório e controle político, no
desenvolvimento de programas de
pacificação e blitz, e na implantação
de uma vasta rede policial para
levar a cabo os programas do Aparato Repressivo. (ALVES, op cit, p. 193)
Logo, consideramos que a influência do exército
sobre a ação policial, no que tange à militarização e, por conseguinte, à
conduta bélica no trato de assuntos de segurança pública, não foi o único fator
que levou contribuiu para posturas arbitrárias e violentas de policiais
militares em sua atuação cotidiana. Penso que este exercício de poder pelas
categorias já citadas, na defesa de seus interesses e buscando um maior
controle sobre os demais segmentos da sociedade, contribuíram sobremaneira para
essa violência, partindo do princípio que a polícia – além do direito – é o
instrumento de repressão mais concreto e direto que os detentores do poder
(econômico, social, cutural) possuem. Neste sentido, abusa-se do instituto do
“exercício legal da força” próprio do Estado e empregado pela polícia, para a
preservação da ordem. Entendo que o fato de haver passado cerca de 20 anos do
fim do regime de força estabelecido no país e as polícias ainda continuarem
cometendo atos de violência – muitas vezes, piores do que aqueles cometidos
durante a ditadura –, reforça essas reflexões.
A
Constituição de 1967, em seu artigo 13, parágrafo 4º, reiterava a missão das Polícias Militares como “instituídas para a manutenção da ordem e segurança interna (grifo meu) nos
Estados, nos
Territórios e no Distrito
Federal” (BRASIL, 2006, s.p.). Para Silva:
As expressões “segurança interna” e “manutenção da ordem” eram
interpretadas pelo Estado-Maior do Exército como estando numa relação de
intensidade. Inicialmente seriam empregadas as forças estaduais. Incapazes ou
insuficientes essas, as forças federais seriam empregadas para reforçá-las ou
substituí-las. A expressão “manutenção da ordem” era, assim, tomada em seu
sentido estrito, ou seja, relacionada a ações de controle em manifestações
públicas e para as ações de choque nos casos de distúrbios civis. As funções
policiais típicas eram desenvolvidas até 30 de dezembro de 1969 (Dec.-Lei nº
1.072) pelas demais organizações policiais então existentes nos Estados:
polícias civis, guardas civis, guardas de vigilância, polícias de trânsito etc.
[...] As Polícias Militares eram marcadamente aquarteladas, e acentuadamente
ociosas. O texto da Constituição de 1946, pois, não deixava dúvidas quanto à
prioridade no emprego da PM: a segurança interna.(SILVA, 1990, p. 184)
Ainda que
a União já se reservasse o direito de legislar sobre “organização, instrução,
justiça e garantias das forças policiais dos Estados e condições gerais da sua
utilização em caso de mobilização ou de guerra, como aponta o art. 5º, XIX,
letra l da Constituição Federal de 1934, na Constituição de 1967, em seu artigo
8º, o texto praticamente repete-se. Em 13 de março daquele ano, o Decreto-Lei
nº 317, que ficou conhecido popularmente como “Lei Orgânica da Polícia”,
reorganizou as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares e, através
de que em seu artigo 20, criou a Inspetoria Geral das Polícias Militares,
efetivou, na prática, esse controle. Com isso, os governadores dos Estados não
detinham autonomia de seus atos sobre as Polícias Militares de seus Estados, sem
que para isso gozassem do aval do Estado-Maior do Exército, por maio da IGPM.
Isso levou as Forças Públicas a militarizarem-se cada vez mais em sua cultura
interna e subordinou, efetivamente, seus órgãos de inteligência aos órgãos de
inteligência do Exército, focando de forma muito mais intensa os problemas de
segurança interna, em detrimento das questões de segurança pública. Voltadas ao
cumprimento da Lei de Segurança Nacional e à preocupação do “combate ao inimigo
interno”, as Polícias Militares viram-se destituídas de sua identidade
policial, que busca controlar a criminalidade e luta para minimizar os índices
de violência, com enfoque privilegiado à prevenção, à negociação e à
administração de conflitos, em lugar da repressão. Soares, faz relevante consideração
sobre essa ligação das Polícias Militares com o Exército e sua indefinição
identitária:
[...] há a dependência das PMs ao Exército,
superpondo-se a seus vínculos com os governos estaduais, o que constitui uma
ameaça permanente ao princípio federativo e representa um risco tácito de crise
institucional. Instadas a organizar-se à
imagem e semelhança do Exército, sendo, entretanto, instituições destinadas a
cumprir papel radicalmente diferente, as PMs acabam produzindo-se como
entidades híbridas, pequenos exércitos em desvio de função. É preciso libertá-las dessa dependência para
que -mesmo preservando aspectos organizacionais, rituais e disciplinares de
tipo militar- tenham a oportunidade de amadurecer como polícias, voltadas para
a defesa dos cidadãos, das leis e dos direitos, através do uso comedido da
força. (SOARES, 2004, p. 3)
A
conseqüência maior residiu – e reside – no afastamento da polícia dos segmentos
mais populares, enquanto no desempenho de sua missão primordial de preservadora
da ordem, caracterizando-se muito mais como força de repressão do que, como
visto, elemento de prevenção e controle. Volto, assim, a chamar a atenção para
um tipo de comportamento que caracteriza a força pública como “braço armado das
elites” em lugar de fomentar a isonomia, a legalidade e o respeito à cidadania
em todos os seus aspectos.
Com a
promulgação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, “estavam
lançadas as bases para todo o tipo de arbitrariedade e uso da força bruta”,
como propõe Sulocki (2007, p. 100), que prossegue afirmando:
É o Estado Polícia, em toda sua realidade
crua, que se levanta. Nesse contexto, as Polícias estaduais, comandadas pelas
Forças Armadas e instruídas pela doutrina da Escola Superior de Guerra,
Doutrina da Segurança Nacional, foram valiosos instrumentos do regime militar.
(ibiden)
Huggins et al (2006) registram que após o advento
do AI-5, a repressão do governo militar aumentou progressivamente, gerando
milhares de novas prisões de suspeitos de subversão. Para fomentar essa
repressão de forma mais eficiente, foram criados nos Estados esquadrões de
operação conjunta, integrados por policiais militares e civis, a exemplo do
Grupo de Operações Especiais (GOE), criado no Rio de Janeiro, entre outras
unidades. Segundo Huggins:
A guerra dos militares contra a subversão não estabelecia limites à
polícia, cuja violência legitimava-se ideologicamente em qualquer caso por uma
difusa doutrina de segurança nacional que legalizava a violência contra
segmentos cada vez mais amplos da população brasileira[...] A ideologia da
“segurança nacional” [...] via o Brasil como se estivesse travando um tipo
especial de guerra contra a subversão interna – ‘uma guerra sem uniformes,
localizada nas ruas, onde o inimigo misturava-se à população em geral, [onde] a
polícia não consegue distinguir os terroristas de bons cidadãos”[...] a
ideologia da segurança nacional era agressivamente promovida nas academias de
polícia e formação militar. (HUGGINS et AL, 2006, passim)
As
Polícias Militares das regiões Norte e Nordeste, as quais sempre viveram em
dificuldades, a exemplo de seus Estados, perceberam o momento político
“favorável”, através da aproximação com o Exército e da atenção que desfrutavam
do governo federal – até pela necessidade de controle sobre áreas onde pudessem
eclodir focos de rebelião e guerrilha, como o Araguaia, no sul do Pará. Assim,
como coloca Silva:
[...] foi reforçada a militarização da Polícia com ênfase nos valores
sempre em defesa da Instituição: “Brasil Acima de Tudo”, “Com o sacrifício da
Própria Vida”, “Polícia Militar Guerreira” , “Hierarquia e Disciplina”, “Ordem
Unida”, “Regulamento de Continência e Sinais de Respeito”, “Sempre Venceremos”,
“Cumprimento de Ordem Superior” e tantos outros. O culto aos valores policiais,
embora lembrados, jamais foram assimilados como verdadeiros para o crescimento
do homem e da Corporação: “Proteger o cidadão”, “Servir”, “Não Maltratar
Presos”, “Tratar a Todos Iguais” [sic],
“Não usar Violência”, “Ser CortÊS”, “Ser Respeitado e Não Temido”, “Prisão
somente em flagrante”. (SILVA, 1998, p. 30)
Embora a Emenda Constitucional Nº 1, de de 17 de outubro de 1969, em seu
artigo 13, parágrafo 4º, houvesse suprimido do texto a expressão “segurança
interna”, seu teor e o Decreto-Lei nº 667/69, que reestruturou as Polícias
Militares, consolidaram sua condição como “forças auxiliares reservas do
Exército” e contribuíram para manter a característica de emprego da força
policial-militar como essencialmente de segurança do Estado.
Por
outro lado, o fato das polícias estaduais estarem, à época, quase que
inteiramente voltadas para a questão da segurança interna, permitiu,
especialmente nos centros urbanos mais desenvolvidos, um considerável
crescimento da criminalidade comum, acrescida ainda, pela criminalidade de
cunho ideológico – como, por exemplo, os assaltos a unidades bancárias por
grupos na clandestinidade, visando o financiamento da luta armada no país. Como
a violência institucionalizou-se e, assim, passou a constituir uma política de
governo, foi natural o surgimento dos esquadrões da morte “informais”, no contexto
das forças policiais.
Considerando
que a década de 1970 foi, provavelmente, a de maior intensidade em termos de
torturas e mortes extra-oficiais motivadas pela repressão política, estas
práticas, que eram comuns dentro das unidades policiais, não tardaram em servir
como forma de “solucionar” os problemas de segurança pública. Logo, grupos de
policiais, civis e militares, começaram a estabelecer o assassinato premeditado
como forma de controle social.
Não
estamos com isso afirmando que o regime militar criou os esquadrões da morte,
entretanto, fatores como a formulação da política de segurança nacional e a
forma como foi inserida no contexto das instituições policiais, além da
ausência de preocupação com uma política efetiva de segurança pública e de um
aprimoramento judicial para as questões da criminalidade comum, colaboraram
sobremaneira para que a violência cometida por policiais, fugisse ao controle e
se exacerbasse, alastrando-se por outras regiões do país. Este tipo de recurso,
perdurou através do tempo, resistindo mesmo ao fim da ditadura em 1984, e,
ainda hoje, perdura nas instituições policiais, mesmo estando a sociedade
brasileira em pleno regime democrático.
O
processo de abertura iniciou-se efetivamente no ano de 1978, materializando-se
com a Constituição de 1988. A Carta, como vimos, dispensa novo tratamento à Segurança Pública,
diferenciado dos demais períodos históricos a contar do Império, dedicando todo
um capítulo para tratar acerca do assunto. Em seu artigo 144, a Carta de 1988 apresenta
Segurança Pública como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos” e
já em seu artigo 6º, a segurança é relacionada como um direito social. Com
isto, procurou-se formatar um novo modelo de Segurança Pública, fundado segundo
os preceitos de isonomia, legalidade, cidadania, respeito aos direitos
fundamentais do homem e à dignidade humana, o que está implícito no teor dos
artigos 1º, 3º e, em especial, 5º da Constituição.
Ocorreram notáveis avanços no que
diz respeito à legislação federal, instrumentalizando instituições e,
principalmente, o cidadão comum, contra o arbítrio e a violência ilegítima
praticada por órgãos oficiais no desempenho de suas funções. Dentre outras leis
e medidas adotadas pelo governo federal, encontram-se, além da Constituição de
1988, a Lei Nº 8069, de 13/07/1990, Estatuto
da Criança e do Adolescente;
a Lei Nº 8.072,
de 25/07/1990 (Lei dos Crimes Hediondos); a Lei Nº 8.078, de 11/09/1990
(Código de Defesa do Consumidor); a Lei Nº 9.099, de 26/09/1995 (Juizados Especiais
Cíveis e Criminais); o lançamento do Programa Nacional
de Direitos Humanos em 1996; a Lei Nº
9.455, de 07/04/1997 (Lei de Tortura); o lançamento, em 1998, do livreto
“Construindo a Democracia Racial”
que traz um
relato sobre a constituição
e as atividades do Grupo
de Trabalho Interministerial para
Valorização da População Negra; o
lançamento do Plano Nacional
Antiviolência ou de Segurança
Pública, em
20/06/2000; a Lei
Nº 10.406, de 10/01/2002 (Novo Código
Civil); a Lei Nº 10.741, de 01/10/2003 (Estatuto do Idoso);
em 2003, o lançamento do Projeto Segurança Pública para o Brasil, em substituição ao Plano
Nacional Antiviolência, entre outras medidas
posteriores.
Apesar desses avanços, o regime
militar deixou como herança um sistema policial militarizado, que a
Constituição Federal de 1988 não conseguir abolir, ao manter, em seu artigo
144, as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares como forças
auxiliares e reserva do Exército, bem como, em seu artigo 42, classificar os
membros dessas instituições como “militares dos Estados, do Distrito Federal e
dos Territórios”, redação dada pela Emenda nº 18, de 5 de fevereiro de 1998.
Vale esclarecer que estamos nos referindo à militarização como “processo de
adoção e emprego de modelos, métodos, conceitos, doutrina, procedimentos e
pessoal militares em atividade de natureza policial, dando assim uma feição
militar às questões de segurança pública” (CERQUEIRA, 1997, s.p.).
Como militares, a tendência é a
adoção de um modelo operacional voltado para a guerra ou, no mínimo, para a
segurança interna, onde o criminoso comum passaria a assumir o papel do inimigo
que deve ser eliminado. Considerando que a polícia, desde suas raízes
históricas mais longínquas no Brasil colonial, como visto, sempre manteve uma
postura de defesa aos interesses daqueles que detêm o poder (não político,
essencialmente, mas econômico, cultural e simbólico), fica fácil entender que o
integrante das categorias menos favorecidas – principalmente, jovens – seja
confundido com este inimigo de outrora, com o membro das chamadas “classes
perigosas” do início do século ou com o comunista do período ditatorial. Hoje,
muda-se apenas o nome: em lugar de comunista e subversivo, passou a chamar-se
“traficante” ou “vagabundo”. Ao que parece, de forma similar ao que ocorreu
quando foram instituídos os IPMs, através do AI-1, basta que uma leve suspeita,
acusação ou simplesmente o preconceito para que alguém seja nomeado de
vagabundo, traficante ou, no mínimo de viciado, para ser alvo de sumaríssimo
julgamento por parte de policiais e daí, ser vítima de uma “pena”, na forma de
castigo físico ou moral, estabelecido segundo um código próprio do policial,
fundado em sua leitura da sociedade, pela lente da cultura institucional. O
livro “Elite da Tropa” (SOARES et al, 2006), ainda que os relatos contidos na
obra, segundo os próprios autores, “são ficcionais, no sentido de que todos os
cenários, fatos e personagens foram alterados, recombinados e tiveram seus
nomes trocados” (idem, p. 11), contém dois depoimentos que reproduzem essa
visão, presente nas instituições de segurança pública. O primeiro, relativo à
tortura e à morte dos chamados “vagabundos”, como se vê a seguir.
O assunto é violência. Quer dizer, a
violência que a gente comete. Alguns chamam tortura. Eu não gosto da palavra,
porque ela carrega uma conotação diabólica. Acho que há casos e casos, e que
nem toda tortura é tortura, na acepção mais comum do conceito [...] O que quero
dizer é que não me envergonho de não me
envergonhar de ter dado muita porrada em vagabundo. Primeiro, porque só bati em
vagabundo, só matei vagabundo. Isso eu posso afirmar com toda certeza.
Sinto minha alma limpa e tenho a consciência leve, porque só executei bandido.
E, para mim, bandido é bandido, seja ele
moleque ou homem feito. Vagabundo é vagabundo (grifos meus). (idem, p.
35-36)
Percebe-se que o depoimento
carrega a distorção do conceito de tortura, na afirmação de que esta,
descaracteriza-se como tal, se aplicada àquele qualificado como “vagabundo” ou
“bandido”, ou seja, ela deixa de ter uma conotação criminosa, hedionda e cruel,
através de uma espécie de desumanização, ou melhor, pela “infamização” – se é
que podemos empregar esse termo – de quem foi chamado bandido. Assim, se a
tortura é uma agressão contra os direitos humanos, quando se nomina a vítima de
“bandido”, desumaniza-se o homem, torna-o infame, e daí, o suplício a ele
aplicado descaracteriza-se enquanto
agressão, passando sua prática a ser entendida como um tipo de controle social
– que pode chegar à morte –, como forma de expurgo. Isso é similar ao
simbolismo encontrado no ritual do suplício, conforme abordado por Foucault, em
sua obra “Vigiar e Punir. Segundo esclarece Foucault:
O suplício repousa na arte quantitativa
do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. O suplício faz
correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo
dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social
de suas vítimas. [...] O suplício faz parte de um ritual. É um elemento na
liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências. Em relação à vítima, ele
deve ser marcante; destina-se, ou pela cicatriz que deixa no corpo, ou pela
ostentação de que se acompanha, a tornar infame
aquele que é sua vítima [...] (FOUCAULT, 1999, p. 31)
Por outro lado, este tipo de
visão, serve como auto-justificativa para o cometimento de assassinatos, ou
seja, elimina os pudores morais de matar alguém, traçando uma linha de
separação entre o crime comum de homicídio, a morte por um ato de
auto-afirmação diante do grupo e de evidente masculinidade e, ainda, de um ato
que faz parte da necessária “limpeza” da sociedade, da qual a polícia está
encarregada.
Na realidade, defendemos que os
termos “bandido” e “vagabundo” são elementos semânticos que tem o propósito de
salvaguardar o policial de um processo de desumanização, diante de si e das
outras pessoas, proporcionando-lhe, como foi dito, uma justificativa para o ato
de torturar ou matar alguém, uma forma de “excludente de criminalidade”,
acreditando, assim, estar a serviço da sociedade. Ao mesmo tempo, as palavras
ocultam em si, toda a força das relações de poder dentro do espaço social, com
seu conjunto de representações, estabelecendo marcas ou ainda, divisões entre
bons e maus, superiores e inferiores, “homens de bem” e “bandidos”. De certa
forma, os termos supramencionados assemelham-se às faixas que os judeus
conduziam atadas ao braço, por imposição do regime nazi-fascista.
O segundo depoimento, dá conta
desse preconceito vigente na ação policial, enquanto resultado de uma imposição
das categorias com maior capital social, político e econômico[3], e como expressou Monet,
“a polícia está longe de ser esse instrumento inerte nas mãos de governantes
que agem eles mesmos permanentemente sob o controle dos cidadãos ou de seus
representantes” (MONET, 2001, p. 16). O depoimento ao qual fazemos alusão neste
parágrafo, registra:
Não vamos ser cínicos e fingir que vivemos no paraíso
da democracia racial. E não estou falando só porque sou negro e vítima do
preconceito, não. Milhões de vezes me pego discriminando também. Na hora de
mandar descer do ônibus, você acha que escolho o mauricinho louro de olhos
azuis, vestidinho para a aula de inglês, ou o negrinho de bermuda e sandália? E
não venha me culpar. Adoto o mesmo
critério que rege o medo da classe média. É isso mesmo, a seleção policial
segue o padrão do medo, instalado na ideologia dominante, que se difunde na
mídia (grifo meu). (SOARES et al, op cit, p. 133-134)
Ressalto nesta última citação, o
fato afirmado por um policial de reproduzir em sua atitude – sem importar que
seja uma manifestação de preconceito racial – o que ele chama de “medo da classe
média”. Chamo atenção, muito mais para o aspecto da reprodução de um conceito
ou mesmo de uma representação, onde o “negrinho de bermuda e sandália” é
associado, no mínimo, à possibilidade de ali estar um bandido.
Assim,
diante da construção cultural de uma polícia que foi forjada para exercer um
papel de instrumento de defesa do Estado, conforme exposto, acreditamos ser natural
que essa mesma polícia reproduza, de forma perversa e exacerbada, em suas ações,
toda a carga de autoritarismo e de força próprias da discricionariedade estatal,
empregando a violência e impondo-se pela força, mesmo que importe em violações
dos direitos humanos e dos cidadãos.
Atento às
considerações de Sousa Filho (2001) relativas à violência da sociedade
escravagista no Brasil, “isto é, uma sociedade com senhores e escravizados,
[onde] (inserção minha) a lei existia para respaldar a crueldade dos senhores
no trato com seus escravos” (idem, p. 104). Mas a prática dos castigos físicos
não se restringia às relações entre senhores e escravos, todavia, a escola os
empregava largamente, como parte fundamental da pedagogia tradicional. Ajoelhar
sobre caroços de milho ou levar golpes de “palmatória” eram dois dos
“corretivos” mais comuns empregados nas escolas de outrora, onde o professor
encarnava a autoridade máxima em sala, arbitrário e revestido do poder para
aplicar tais penas, dentro do contexto de uma educação alienada, sem espaços
para um posicionamento mais crítico. Nas Forças Armadas, em especial na
Marinha, pode-se verificar que até o ano de 1910, quando ocorreu a Revolta da
Chibata, os marujos que cometessem transgressões eram punidos com chibatadas e,
mesmo hoje, sob a alegação da necessidade de disciplina e do aprimoramento físico,
trotes humilhantes e exercícios extenuantes, são formas de “educar” aquele que
não cumpriu uma tarefa ou que feriu normas de um regulamento.
Entretanto,
o que evidencio é o fato de que as relações entre senhores e escravos, na
escola, nas forças militares e outras onde há a presença de uma norma, seja de
forma positiva ou tácita, há uma relação pedagógica, onde se exprimem e se
transmitem as relações de poder existentes no contexto social, ainda que, às
vezes, de forma coercitiva. Diante desse fato, torna-se possível compreender
que o policial é formado dentro de parâmetros curriculares diversos daqueles
empregados durante o regime militar, todavia, suas atitudes são forjadas no
cerne de um habitus, que o prepara
para ser “um aplicador da violência que seja adequado ao jogo de forças típico
da sociedade brasileira” (LUDWIG, 1998, p. 8).
Diante dessas considerações, entendo que na produção da
violência cometida pelo soldado da Polícia Militar há a reprodução de um modelo social onde a aplicação de castigos físicos – ou
de formas simbólicas de violência – era plenamente aceitável, como forma de
punição, correção ou prevenção a condutas consideradas como desobediência,
desrespeito e ilegais. O que interessa a partir de então, para efeito
desta pesquisa, é a compreensão acerca de como o soldado da PMRN se percebe,
enquanto um sujeito desse processo e que representações sociais, de caráter
mais hegemônico, constrói relativamente à violência que pratica. Destarte, no
terceiro capítulo passo á apresentação da metodologia empregada na pesquisa,
bem como, à apresentação e análise dos dados empíricos coletados.
2.2 Direitos Humanos no contexto da
Corporação Policial Militar
Ao examinarmos os princípios que
norteiam o PNSP, encontramos que as polícias destinam-se a servir os cidadãos,
devendo proteger direitos e liberdades, bem como, responsabilizarem-se por
inibir e reprimir suas violações. O mesmo documento evidencia que a ação da
polícia deve ser acompanhada de ação social preventiva, onde ambas as ações são
complementares entre si[4].
Entretanto, outro princípio assevera
que os policiais são seres humanos, considera-os como trabalhadores e
investe-lhes da condição de cidadãos, logo, portadores de direitos humanos.
A convivência com a Corporação PM
permite observar que, não obstante as condições de humanos e cidadãos,
atribuídas a seus integrantes, os estatutos reguladores de sua conduta são, em
sua maioria, impróprios e inadequados, à realidade de uma sociedade brasileira que, como já
vimos, a partir da década
de 1980, iniciou um momento
de transição. Essa transição levou a um processo de (re)elaboração
de algumas representações, conceitos e signos, referentes
à noção de segurança
pública, buscando uma adequação ao novo cenário social brasileiro e suas expectativas.
Hoje, quando novas
formulações sociais,
econômicas e políticas vão sendo sedimentadas no país,
bem como, diretrizes mais
modernas são estabelecidos para as ações de segurança pública, há
fortes indícios
da permanência de conceitos
atávicos no contexto da instituição PM, compromentendo o desempenho
de seus integrantes. Nota-se, por exemplo, que
a hierarquia e a disciplina,
princípios organizacionais que deveriam funcionar, meramente, como
elementos mantenedores
de uma ordem interna,
transformam-se em óbices
à autonomização dos agentes de ponta.
Retomando a proposição de Soares
(2003) quanto à omissão histórica que alcançou as PMs no processo de
democratização nacional, verificou-se uma cobrança generalizada no que diz
respeito à humanização e ao preparo dos policiais, quanto ao tratamento e
atitudes dispensados aos cidadãos durante sua jornada de trabalho. Essa
cobrança gerou (e tem gerado) uma avalancha de acusações na mídia, denúncias e procedimentos
administrativos nas Ouvidorias e Corregedorias de Polícia, uma série destas,
infundadas.
Ao que parece um “espírito
revanchista” contra o arbítrio do passado, tem afetado consideráveis parcelas
da sociedade, que, em muitos casos, esquecem que os policiais são, tembém,
seres humanos, portadores de direitos e prerrogativas funcionais. Não que
pretendamos justificar a ação truculenta de policiais violadores dos direitos
humanos, colocando-os na condição de vítimas. Entretanto, é importante
considerar dois aspectos fundamentais na produção desse comportamento. O
primeiro, consiste na violência com que se defrontam nas ruas, cotidianamente.
O estresse provocado pelo envolvimento em situações de risco, o turbilhão de
emoções entremeadas em fatos, onde lhe é exigido auto-controle e imparcialidade, o desgaste físico provocado
por jornadas de trabalho desgastante, constituem fatores que, não raro, são
desconsiderados no momento de julgar sua conduta e aplicar-lhe a punição do
juízo público ou disciplinar. Vale registrar que esses elementos de fadiga
física e psicológica, comprometem não só as relações de sociabilidade relativas
ao seu desempenho profissional, todavia, aquelas que se referem ao convívio
familiar, às amizades, ao próprio reconhecimento de si mesmo como cidadão e
alguém que tem direitos inalienáveis, enquanto ser humano.
Daí, não ser estranho que muitos
integrantes das PMs afirmem que direitos humanos servem só para proteger
bandidos. E este alheiamento, esta falta de vivência com o uso e gozo dos
direitos que lhes são peculiares, tem levado à violação dos direitos alheios.
Essa situação atinge de forma mais incisiva, as Praças, considerando que, dentro
de suas respectivas competências e prerrogativas, cada nível hierárquico da
Oficialidade PM, detém o poder disciplinar em suas mãos e, de certa forma,
simboliza o poder dominante nas relações vigentes na sociedade civil. Segundo
Muniz, referindo-se à situação existente na Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro (PMERJ):
Os suboficiais e praças descrevem
sua realidade profissional, quase em uníssono, como um “mundo de obrigações”
refratário às conquistas cidadãs. A atmosfera constituída por este mundo
disciplinar é carregada por um apetite suspeitoso e punitivo que se estende
para além do universo profissional, invadindo as outras esferas de
sociabilidade da vida dos policiais, inclusive a dos inativos. Atraso nas
prestações do crediário, dívidas pendentes, indução à embriaguez, freqüência em
eventos sociais, casas noturnas ou bares consideradosimpróprios por algum
superior hierárquico fazem parte do repertório de situações que podem ser
“enquadradas” como faltas que atentam contra o “decoro da classe” e o “pundonor
policial militar”. Do mesmo modo, eventuais reclamações de problemas conjugais
ou desentendimentos na vizinhança vividos por um policial militar podem ser
interpretados como episódios incompatíveis com a “honra pessoal” dos
integrantes da “família policial militar” (MUNIZ, 2007, p. 66)
Nota-se
uma ingerência que ultrapassa os muros do quartel e os limites do serviço, para
adentrar esferas da vida pessoal dos policiais. E esse mau uso dos expedientes
disciplinares, alia-se à formação castrense a que são submetidos os milicianos.
Ainda
que tenham ocorrido substanciais mudanças nas diretrizes e nas bases
curriculares para a formação dos policiais, é notório que o viés militarizado
da Corporação mantém forte influência sobre seus Centros de Formação. E, neste
sentido, elementos como energia e seriedade, muitas vezes, tornam-se sinônimos
de intolerância, rispidez e truculência, em nome de um pseudo “enrijecimento de
caráter”. A cobrança exacerbada nos movimentos e atitudes militares, bem como,
as punições físicas ou o corte de direitos, são impostos aos alunos com
naturalidade, acreditando-se que essas atitudes irão gerar um espírito
disciplinado e obediente, pronto a responder – como é dito em muitos centros de
formação – “sim, senhor; não, senhor e quero morrer”. Aliás, esta é apenas uma
das múltiplas expressões infelizes que se acham ecoando nas escolas policiais.
Então,
como exigir desse homem uma postura diferente, cidadã e voltada para os
direitos humanos, se seus próprios direitos são usurpados durante o período de
formação, se sua intimidade é violada depois de terminado o curso, se as
punições e os privilégios são distribuídos de forma desigual?
Como condenar o policial que busca
refúgio sob a proteção de uma certa autoridade em segmento outro do poder
público, desviado de sua função original, se essa foi a fórmula que se
construiu – inclusive, pelos Oficiais – para alcançar melhores rendimentos e
qualidade de vida?
Não estamos apregoando o fim da
disciplina ou do respeito à hieraquia. Contudo, entendemos que o policial
militar como agente aplicador da lei, e que deve funcionar como elemento de
proteção dos direitos humanos, só conseguirá exercer plenamente suas funções
como tal, se, a partir de sua formação, contar com a devida proteção aos seus
direitos fundamentais.
CONCLUSÃO
O legado militar e a herança autoritária
que coube historicamente à Polícia Militar, tem prejudicado um relacionamento
mais próximo com os demais segmentos da sociedade. Além disso, a idéia de uma
Corporação policial que está a serviço de uma elite, que é um mero instrumento
de emprego da força característica do Estado, precisa ser mudada. Para muitas
categorias, o PM é o elemento repressor, o protagonista do horror que aflige as
classes mais populares.
Entretanto, a atividade do
policial-militar que está na linha de frente das operações policiais, reflete
de forma nítida toda a carga de preconceitos que se esconde nas políticas
públicas de segurança.
É evidente que muitos policiais
cometem abusos, arbitrariedades, ilicitudes e violações de direitos, todavia,
cabe-nos perguntar: esta não seria apenas a “ponta do iceberg”? Será que o
homem que pratica essas atitudes, o faz simplesmente pelo desejo de violar os
direitos alheios ou não haveria um processo maior que o envolve com múltiplas
variáveis, levando-o a transgredir?
A relação direitos humanos-polícia é
muito complexa para ser solucionada unicamente com algumas aulas durante a
formação ou um curso esporádico nem sempre frequentado por quem precisa. É um
problema de vivência, de princípios e de mentalidade, que somente uma profunda
transformação no modelo e estrutura de nossas polícias poderia produzir
resultados efetivos.
É preciso entender que essa mudança
ultrapassa os limites da Corporação policial e alcança outras dimensões onde se
desenvolvem suas atividades. Isto representa dizer que, não basta exigir que o
policial respeite o cidadão, é essencial que o policial seja também respeitado;
não é suficiente dizer ao policial que ele não deve impor sofrimento, torturar,
matar ou ferir àqueles que estão à margem da lei ou às populações menos
favorecidas, é necessário que se observe e que se puna, aqueles que, sem arma
na mão, impõem o sofrimento da fome, torturam pela desigualdade, matam pela
falta de assistência e ferem pelo abandono essas mesmas populações.
Não defendemos que os policiais
violadores sejam tratados como vítimas e “coitadinhos”, passem impunes por seus
atos cruéis e abusivos. Todavia, ressaltamos, que se lute por novas estruturas,
onde os ideários dos direitos humanos encontrem campo fértil para germinar e
crescer.
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coord. Geral Prado)
[1] Segundo o Art. 6º da CF/88, “são direitos sociais a educação, a saúde, o
trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade
e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
[2]
Percebe-se que a tríade liberdade, igualdade e fraternidade, expressa como
fundamento filosófico que permeou as principais declarações de direitos da
Idade Moderna (Declaração de Direitos da Virgínia de1796 e as Declarações de
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e 1793), mantendo-se, ao longo do tempo,
no âmago dos principais documentos de direitos humanos e culminando com
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, tem sua
influência em nossa Carta Magna, não só no que se refere aos artigos 5º e 6º,
todavia em outras de suas partes, como o art. 144.
[3] Para melhor esclarecimento, ver os estudos de
Bourdieu sobre o poder simbólico e capital social nas seguintes obras:
BOURDIEU,
Pierre. Esboço de um
teoria da prática.
Tradução das partes:
“Le trois modes de connaissance” e “Structures, habitus et pratiques”. In:
ORTIZ, Renato (org.) & FERNANDES,
Florestan (Coord.). Pierre Bourdieu, São Paulo: Ática, 1994. p. 46-81.
______. Razões práticas:
sobre a teoria
da ação, Campinas, SP:
Papirus, 1997.
______. Meditações pascalianas. Tradução
Sergio Miceli. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001a.
|
[4]
Isto confirma a importância de se ter uma visão sistêmica da segurança pública.